Emissão Renascença | Ouvir Online
Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
A+ / A-

NEM ATEU, NEM FARISEU

​A vida não é propriedade privada

03 mar, 2017 • Opinião de Henrique Raposo


Temas como a eutanásia, o aborto e as barrigas de aluguer não podem ser discutidas na esfera da escolha pessoal protegida pela privacidade.

Meu caro Pedro Norton, julgo que partes de pressupostos errados nesta questão da eutanásia. Dizes que tens uma “posição tendencialmente favorável à despenalização da eutanásia” e invocas como argumento a “crença na primazia do valor da liberdade individual”; afirmas que “esta é uma matéria do domínio do privado no seu sentido mais profundo e mais radical”. A minha discordância começa quando usas a palavra “privado”. A vida não é privada nesse sentido, não é privada como se fosse uma coisa.

A tua vida, a minha vida, a vida de todos os indivíduos não são propriedades privadas. A vida é sagrada à luz do direito natural e desta lei constitucional. Portanto, temas como a eutanásia, o aborto e as barrigas de aluguer não podem ser discutidas na esfera da escolha pessoal protegida pela privacidade. Admito que desejes remeter a minha fé à esfera privada. Discordo, mas vejo a lógica (errada) desse raciocínio. Mas já não aceito como válida a ideia de que podemos remeter a escolha da morte para a esfera privada.

A meu ver, dar esse passo é permitir a relativização de um dos poucos valores absolutos que devemos defender: a vida. Se não absolutizamos a vida, absolutizamos o quê? Sem um centro vital, meu caro amigo, o cepticismo que partilhamos corre o risco de cair num cinismo que encolhe os ombros.

Continuo com aquilo que me parece ser a contradição insanável do teu argumento. Dizes que reclamas “o direito a dispor” da tua liberdade “sempre que ela não contenda com a liberdade de mais ninguém”. Sucede que um pedido de eutanásia entra no perímetro da liberdade de outras pessoas. Para começar, entra no perímetro da liberdade dos médicos e enfermeiros. Este tema está enviesado no sentido do sofrimento de quem está doente; esquece-se sempre o sofrimento dos profissionais de saúde que têm de apertar a seringa até ao fim, ou que têm de preparar o cocktail mortal.

Meu caro Pedro, o essencial neste debate não é quem quer morrer, mas quem tem de matar. E, se a lei for de facto aprovada, surgirá em Portugal um cenário macabro já evidente na Bélgica e Holanda: como a maioria dos médicos recorrerá à objecção de consciência, formar-se-á uma pequena clique de médicos da morte. É isso aceitável num hospital? Como dizes na tua coluna, não seria mais proveitoso lançarmos o debate sobre uma estratégia de cuidados paliativos que envolvesse hospitais, lares e apoios ao domicílio de enfermeiras e auxiliares?

O meu terceiro e último ponto já aproveita uma das tuas dúvidas. Com muita razão, fazes uma pergunta: “como se garante, sem margem para dúvida, que alguém está mentalmente são” quando faz aquele pedido? Na minha opinião, esta é uma pergunta retórica, porque uma pessoa minada pela dor já perdeu o livre arbítrio. Como é que alguém torturado pela doença pode fazer escolhas livres e racionais?

Neste sentido, parece-me inaceitável que se aceite como válido o pedido de alguém muito doente e quase sempre sozinho. O que me leva a um escândalo que continua por difundir: na Holanda e na Bélgica, essas cidadelas do “progresso”, psiquiatras já atiram para a eutanásia pessoas com doenças mentais. Como é que uma pessoa inimputável “escolhe” a eutanásia? É uma impossibilidade lógica que esconde este escândalo. Meu caro amigo, julgo que não é preciso ter fé para ver aqui um motivo para não copiarmos esta lei.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Oscar maximo
    05 fev, 2018 Lisboa 13:36
    Não concordo logo na 1* frase: a vida não é propriedade privada. A partir daí pouco interessa ouvir mais argumentos.
  • mara
    06 mai, 2017 Portugal 22:52
    Meu pai esteve em coma várias vezes, numa das vezes os médicos chamavam-lhe o ressuscitado, suponhamos que tinha pedido ou me tinham pedido autorização para lhe dar uma injecção letal, teria perdido meu pai mais cedo...conheci uma senhora que esteve em coma muito mal, os médicos diziam: não há nada a fazer, viveu após esse coma vários anos, se for aprovada essa lei será muito injusta...admito que pessoas em pleno das suas faculdades porque estão desiludidas com a vida se suicidem, embora isso me dê uma enorme mágoa, mas que um filho, peça acabe com a vida do meu pai, da minha mãe, com ou sem Fé é horrível, há tempo fui com uma doente às urgências ao hospital de S. José ouvi uma filha dizer a uma Mãe aflita com dores: cale-se sua p...por sua causa estou aqui a estas horas da noite, ouvi dias antes uma cabeleireira perguntar a uma dama como está a sua mãe? Há um mês que está na minha casa estou farta dela, não a suporto mais...estas infelizes mães se a lei da eutanásia for aprovada serão carne para canhão...Se aprovarem esta lei será mais uma monstruosidade para destruir a vida da "peste grisalha"...Enfim o demo no seu melhor, o que será da humanidade no final deste século?
  • Maria
    10 abr, 2017 Lisboa 20:23
    👏🏻👏🏻 Parabéns Henrique. É a primeira vez que ouço falar deste tema com clareza, franqueza e acima de tudo, superior e indiferente a preconceitos e a teorias de uma sociedade que não pensa por si mesma.
  • Celene
    09 abr, 2017 Cabo Verde 11:00
    Gostei da resposta! Matar nunca é uma liberdade. Ninguém é livre para matar nem para ser morto! 🙏🏿 parabéns pelo artigo
  • Rui Martins
    10 mar, 2017 Lisboa 00:26
    De vez em quando, lá vem mais um tema para nos fraturar a cabeça. Esquecemos por uns tempos as nossas miseráveis vidinhas e armamo-nos em filósofos, desonestos intelectuais. e guardiães de valores, que são muito uteis para estas ocasiões, mas borrifamo-nos para eles nas demais. Já há ruido a mais tendo em conta o reduzido numero de pessoas que necessitam desta lei agora. Se neste país não há igualdade de oportunidades na vida ao menos, que a haja na morte.
  • ALETO
    05 mar, 2017 Lisboa 22:00
    Antes de enviar esta mensagem, gostaria de informar a Renascença que a censura a comentários faz parte de um passado que queremos esquecer na nossa história. A censura ou o chamado «lápis azul» contra comentários que são desfavoráveis à opinião do autor deste texto de opinião, demonstram que a Renascença não se enquadra numa sociedade pluralista e democrática. Por isso, espero que publiquem a minha opinião, desfavorável ao sentimento e à opinião de Henrique Raposo sobre a eutanásia. Se este autor não tem competências em matéria de saúde e medicina, não pode escrever e publicar aquilo que vem expondo sobre este mesmo tema há cerca de quatro semanas.
  • Barsanulfo
    05 mar, 2017 alcains 09:48
    Ai Henrique PaFalhoso, manhoso... Já conquistaste um lugarzinho no céu! A santa madre igrejinha, a padralhada, mais medieval da Europa, os grupinhos do eixo Lisboa -Cascais- Qtª da Marinha, dos off shores e afins, rejubilam,agradecem o frete e a verborreia ideológica. Ao contrario do que afirmas, não tens a menor preocupação com a -eutanásia- e todas as discussões que esta suscita. Não, o que pretendes, ganhas aliás a vida assim, é ainda a lei "mal saiu do adro da igreja", colocar-te ao lado dos que a vão combater, porque a esquerda que abominas quer aprovar a lei. nada mais! Por fim, quero dizer-te que hás-de morrer, numa cama de hospital, desfeito em dores indivisíveis, em sofrimentos atroz, mas sem eutanásia! Aleluia!
  • Jose Morais
    04 mar, 2017 Lousada 22:13
    Em resposta à Teresa que apresentou um pseudo argumento: Se gostar de cocaina pode emigrar para paises da América latina onde os agricultores a cultivam como cá cultivamos a tronchuda; Se gostar de ser espancada pode emigrar para a Rússia onde é legal o marido espancar a esposa; Se gostar de pedofilia pode emigrar para países muçulmanos árabes e africanos onde pode casar com crianças de 10 anos; Se gostar de passar fome pode ir para a Venezuela; Se gostar da condenação à morte pode emigrar para Singapura; Se gostar de um estado que controla tudo, pode emigrar para a Coreia do Norte Mas depois, caso deixe de gostar, faça o favor de não voltar até que as suas ideias fiquem em ordem Caso algum dia fiquem.
  • Soldier
    04 mar, 2017 Rehovot 20:50
    Ha muito que não lia um texto dos teus , amigo Henrique. Como sempre está ao mais alto nível. Mesmo sem o assinares conseguiria dizer que é teu. Na Bélgica chegaram ao ponto de eutanasiar uma senhora de cinquenta e poucos anos. Perfeitamente saudável. A senhora pediu para morrer. Meramente porque estava cansada da vida. Qualquer dia vamos ter mecanismos para eutanásia nas cabines telefônicas. A Malta vai lá e suicida-se no meio da rua na cabina telefónica.
  • Miguel
    04 mar, 2017 Madeira 18:36
    Que direito tem uma pessoa saudável de dizer a outra que está em agonia: sofre lá mais um bocado, que eu não permito que morras. QUE DIREITO????? Que direito tem um eleitor de uma terra qualquer de, com o seu voto, proibir um desconhecido no lado oposto do país de decidir exatamente como viver e como morrer? QUE DIREITO????? Existem "cliques" na Bélgica e Holanda de profissionais da saúde que aceitam cumprir o último deseja de um doente? Pois ABENÇOADOS SEJAM!!!!!