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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

A nova indústria e os serviços

18 fev, 2017 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Na economia moderna não tem sentido a antiga distinção clara entre indústria e serviços.

Diz-se, por vezes, que deixou de haver indústria em Portugal. O mesmo se ouve em muitos outros países, desde logo nos Estados Unidos. O proteccionismo de Trump tem como objectivo mais ou menos consciente um regresso à indústria de produção em massa, que criava muitos empregos. Só que esse regresso não vai acontecer: a reindustrialização, que muitos defendem, não poderá ser voltar ao passado, mas promover uma indústria de novo tipo.

É o que afirma um grupo de trabalho da CIP, coordenado pelo Eng. Luís Mira Amaral. Trata-se “de uma indústria que utiliza ao máximo as tecnologias de informação, comunicação e localização mais avançadas e a robótica para desenhar, projectar e produzir produtos”. Acrescente-se, também, a chamada inteligência artificial, que cada vez mais permite que máquinas façam tarefas até aqui reservadas a humanos altamente treinados. Os apoios às PME recentemente anunciados pelo governo de António Costa – no quadro da estratégia para a chamada “indústria 4.0” – pretendem, e bem, estimular a digitalização das empresas.

Convém sublinhar que é errónea a ideia de que só a indústria de tipo clássico é produtiva. Aliás, antes da revolução industrial uma escola de economistas, os fisiocratas, defendia que a única fonte geradora de riqueza era a agricultura. De facto, a partir de uma semente ou de uma pequena planta, com a ajuda de algum trabalho agrícola, da terra brotam frutos, vegetais, etc, em quantidade e valor bem maiores do que os “inputs” utilizados.

Naturalmente que esta velha ideia de que apenas a agricultura é produtiva não resistiu à extraordinária expansão económica e, a prazo, também social, trazida pela revolução industrial em Inglaterra e que depois se espalhou pelo mundo. Mas não se repita a ilusão dos fisiocratas: a indústria não é, agora, a única fonte de riqueza – os serviços, desde que úteis, também criam valor. E a nova indústria está crescentemente ligada aos serviços. A distinção tradicional entre sector secundário (indústria) e terciário (serviços) faz hoje pouco sentido.

Fim da produção em massa

Por exemplo, o jornal Le Monde lembrava há dias, em editorial, que o importante, actualmente, é a cadeia de valor: “cada país deve contribuir com um máximo de valor acrescentado para a criação de um produto complexo”. O que põe em causa as medidas proteccionistas anunciadas por Trump. Assim, diz o jornal, não é grave importar aparelhos iPhone montados na China, se eles são concebidos pela Apple na Califórnia.

Uma coisa é certa: não voltarão as grandes indústrias, de produção em massa, das quais há cem anos foi pioneiro o Ford modelo T. Eram fábricas que empregavam milhares de operários, enquadrados por uma disciplina e uma hierarquia de tipo militar.

Hoje, e cada vez mais no futuro, a automação permite prescindir de uma larga parte do antigo operariado, envolvido na produção em cadeias de montagem. A automação promove a repartição das várias tarefas produtivas por unidades mais pequenas, mais autónomas, mais flexíveis e situadas nos mais diversos locais do globo.

Flexibilidade contra massificação

A flexibilidade que as novas tecnologias trazem ao processo de fabrico vai ao ponto de “oferecer ao mercado, sem aumento de custo, uma vasta gama de produtos perfeitamente adaptados a cada cliente individual”, como se lê no acima citado estudo da CIP. É o contrário da massificação, tão bem criticada no filme de Chaplin Tempos Modernos, de 1936.

A informática e outras formas de automação invadem todos os departamentos das empresas e alteram o modo de produção. As fábricas do futuro, que já começou, oferecem não só produtos como também serviços – caso da manutenção pós-venda de equipamentos, por exemplo. E recorrem a inúmeras empresas de serviços, para actividades como a limpeza, a contabilidade, a segurança, a logística, etc., “externalizando” essas actividades. A organização do trabalho deixou de seguir o modelo militar, tornando-se mais flexível e criativo (em grupos quase autónomos, por exemplo) e menos hierarquizado.

É, por isso, difícil traçar uma linha divisória clara entre indústria e serviços na economia moderna. Tudo se interliga. E quanto aos receios suscitados em matéria de emprego pelos avanços da automação, a esperança está em que os serviços ligados às novas tecnologias compensem a eliminação de postos de trabalho resultante do progresso.

Comentários
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  • Valdemar Rodrigues
    19 fev, 2017 Sintra 18:58
    Ora, se o trabalho humano tende a ser sobretudo "inteletual", artístico ou criativo, ,mas ainda por conta de outrém, por conta do Estado ou das empresas, então o que resta aos "intelectuais" para valorizarem devidamente o seu trabalho é a greve ao "pensamento", uma coisa que Teilhard de Chardin previu, em 1975, para o século em que estamos...
  • Justus
    19 fev, 2017 Espinho 18:11
    A mente de Sarsfield Cabral vê tudo distorcido! Só porque a indústria, nestas últimas décadas, mudou e transformou-se, entende que já não tem sentido a distinção entre serviços e indústria! Mas os serviços também não se transformaram, e de que maneira, Sr. Sarsfield? É bom entender que já não estamos nos tempos da Velha Senhora e que tanto a indústria como os serviços, a agricultura, o comércio, etc., etc., têm vindo a sofrer enormes transformações. O que acontece é que a indústria não deixará de ser indústria só porque se transformou, o mesmo acontecendo aos outros ramos de atividade. Se Sarsfield Cabral quiser dar-lhe outro nome dê, mas não será isso que fará da indústria o mesmo que os serviços. Serão sempre atividades diferentes, pelo menos nestes séculos mais próximos. Talvez Sarsfield Cabral já esteja a sonhar com o futuro longínquo em que à face da terra existirá apenas uma única atividade: a ociosidade permanente.
  • JP
    19 fev, 2017 Olhão 07:34
    Voltemos ao conceito do just in time.
  • MASQUEGRACINHA
    18 fev, 2017 TERRADOMEIO 19:31
    Com o devido respeito (sempre) pelo articulista, o artigo parece ter sido elaborado por um (bom) aluno aí do 9º ou 10º anos. É evidente que o curto espaço que tem não permite particulares profundidades - no entanto, e dada a frequência com que escreve, por que não seccionar uma determinada temática por dois ou mais artigos, como, aliás, fazem outros colunistas? É que, mesmo sem a tal profundidade, haveria alguma coisa a dizer sobre o papel da mecanização agrícola e do morgadio (uma opção política) na revolução industrial; ou dos objectivos últimos (sociais e políticos) pretendidos pela chamada organização científica do trabalho. Ou sobre o que substituiu o padrão-ouro no US dólar, e porquê. Ou como a tal "cadeia de valor acrescentado" está a tentar dividir o mundo entre países "que concebem" e países "que produzem", sobretudo porque os últimos "produzem" mais barato e são menos "exigentes" (e.g., o trabalho como um custo, e ponto final). Ou de como um dos elos da corrente, o terciário comércio e distribuição, se apropria da fatia de leão do valor dos bens, em detrimento dos seus produtores - também "acrescentando" malefícios ambientais e, até, de saúde pública. Atenção: não há aqui luditas! Tudo a favor do progresso tecnológico - mas ao serviço do progresso humano, não só do progresso de alguns. A política tem que desempenhar o seu papel: definir objectivos, impor estratégias e limites. E eu a achar que empresas "digitalizadas" eram aquelas tipo Panama Papers...
  • António Costa
    18 fev, 2017 Cacém 13:39
    É um bom artigo, e o Futuro o que vai ser? Tenho um livro chamado "O Futuro", do inicio dos anos 70. Não acertou em nada do que realmente aconteceu e que marca a grande diferença dos 70s: a enorme força da Internet e das comunicações móveis (telemóveis e companhia). O Homem não tem colónias em Marte, e pior, o programa de exploração espacial ficou em "Banho Maria".