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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

O debate público e a ética

11 fev, 2017 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


Na sociedade pluralista, as decisões legislativas sobre temas com incidências éticas exigem um debate público.

As sociedades onde vigoram regimes democráticos liberais, como é felizmente o caso de Portugal, são pluralistas. Não existe, aí, uma concepção ética que a todos se imponha, ao contrário do que acontecia no passado e hoje persiste sobretudo em países islâmicos. Nas sociedades pluralistas convivem diferentes perspectivas sobre questões fundamentais, como o sentido da vida e da morte, o aborto, etc.

Mas será sempre necessário assentar em algumas decisões que possam levar à elaboração de leis. Em muitos casos não é difícil encontrar consensos, se não unânimes, pelo menos largamente maioritários.

Por exemplo, não existirá entre nós muita gente que defenda ser legítimo roubar. Pelo contrário, em matérias que envolvam diferentes concepções da pessoa humana há necessariamente posições contraditórias. Ora, sendo preciso legislar em tais áreas, algumas dessas posições farão vencimento, em detrimento de outras.

A resposta democrática a este problema está no debate público aberto a todos, de modo a que possam influenciar a decisão a tomar. Um debate aberto a todos não exclui perspectivas religiosas. Para um cristão, por exemplo, a vida é um dom de Deus, logo não é aceitável o suicídio. Só que ele não pode impor a sua visão a toda a sociedade, onde há agnósticos e ateus, para quem suicidar-se é uma prerrogativa da autonomia e da liberdade humanas.

Ética e religião

Por isso, julgo preferível que, não escondendo as suas convicções, os cristãos debatam questões éticas sem recurso a argumentos de natureza religiosa. Já vimos isso com o aborto, que é um problema ético, não religioso – se o feto é uma vida humana, não será ético eliminá-la.

Também nos debates em curso na sociedade portuguesa sobre a eutanásia e o suicídio assistido os argumentos de natureza religiosa devem ser evitados.

Por isso, me parece importante o artigo de Graça Franco publicado neste “site” no passado dia 1 sobre a eutanásia, onde se diz: “A sacralidade da vida não tem aqui conotação religiosa. Corresponde ao interdito ‘não matarás’, comum à maioria das culturas e inscrito na declaração universal dos direitos do homem. Uma vez ultrapassado este interdito, a sociedade entra na rampa do descarte dos que já não lhe são úteis”.

Graça Franco sabe do que fala, porque vivia na Bélgica quando ali se debateu e legalizou a eutanásia. Assistiu a que “não só não foram cumpridas as reservas iniciais como intencionalmente se foi alargando o âmbito da lei a mais e mais casos”.

E acrescenta: “O perigo da chamada ‘rampa deslizante’ não é um fantasma que paira sobre as cabeças mais conservadoras, é um dado provado pelas estatísticas para quem quer que as consulte. Na Bélgica no ano a seguir à votação da lei foram eutanasiadas 235 pessoas, muitas das quais, diziam os preponentes da lei que a descriminalizou, ‘esperavam há anos esse acto de misericórdia”.

Em 2013 já foram 1807 os eutanasiados. Em 2015, entre eutanasiados e suicidas assistidos na Holanda, o número foi de 4829, ou seja 3,4 por cento do total de mortes registadas nesse ano”.

Aliás, como diz Graça Franco, “ser contra a eutanásia não é defender o prolongamento inútil de uma vida que se esvai”. Deve-se evitar o “encarniçamento terapêutico”. E convém não esquecer, acrescento eu, que existe entre nós o “testamento vital”, onde uma pessoa pode manifestar o tipo de tratamento, ou os cuidados de saúde, que pretende ou não receber, quando estiver incapaz de expressar a sua vontade.

Legalizar a marijuana?

No dia da eleição presidencial legalizaram foi legalizado o uso da marijuana (ou cannabis) em sete estados americanos, incluindo a Califórnia, que tem um quinto da população dos EUA. Em Portugal o Bloco de Esquerda defende essa legalização.

Contra o que eu julgava (e, como eu, muitos portugueses) - que a marijuana para efeitos recreativos seria relativamente inócua - um artigo do Prof. Walter Osswald no jornal “Público” do passado dia 3 alerta para que essa ideia é errada. Escreve ele que a marijuana “induz dependência psicológica forte e por isso é muito justamente classificada como uma droga”: também ela obriga a recorrer continuamente ao seu uso. O qual “tem efeitos psicotrópicos de carácter alucinogénio e disruptivo da cognição e da capacidade de avaliar situações ou tomar decisões adequadas”.

Quanto às proclamadas virtualidades terapêuticas da marijuana, o Prof. Osswald coloca reservas.

Ora, sobre este assunto – que é, antes de mais, um problema de saúde pública – “não assistimos entre nós a debate audível”, talvez porque não convenha a certas posições. E nesse indispensável debate devem ter um papel central os cientistas, como é o caso do Prof. W. Osswald. Venha o debate, antes que seja tarde demais e nos apresentem a legalização da marijuana como um facto consumado, o que não seria ético.

Comentários
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  • MASQUEGRACINHA
    12 fev, 2017 TERRADOMEIO 21:57
    E o que fazer, por exemplo, dos hebreus, dos filósofos gregos, dos legisladores romanos, pré-cristãos, ou até da influência islâmica, enquanto enformadores dos valores éticos e morais das sociedades de tipo europeu? Pô-los em nota de rodapé ou declará-los pós-verdades? De facto, em princípio, para um cristão deveria bastar a declaração da sua fé, sem mais explicações, para se saber o que pensa sobre a sacralidade inviolável da vida - fora algumas excepções, como são exemplos a legítima defesa, a guerra, e, em muitos casos, a pena de morte. Ou seja: ser cristão não é garante de que se tenha o conceito de sacralidade da vida como um valor absoluto inviolável, mas sim como valor relativo - como o mostram as excepções. Ressalvo aqui o caso, o único que conheço, existindo provavelmente outros, dos cristãos Testemunhas de Jeová, que não admitem matar nem em circunstâncias de legítima defesa ou guerra, supondo eu que também não admitam a pena de morte, o suicídio, a eutanásia ou o aborto. Mas admitem impedir transfusões de sangue, ainda que isso implique a morte do paciente... Enfim. Em casos como o da eutanásia, a simples profissão de fé só pode ser entendida por quem da mesma comungue, pelo que, valendo como argumento de explicação, não vale como argumento de debate. Por outro lado, há ainda a questão das excepcionalidades, por que é a vida sagrada numas circunstâncias e noutras não - uma questão que decerto interessará a alguns cristãos, a outros nem por isso.
  • Justus
    12 fev, 2017 Espinho 15:41
    Por quererem "parecer ser independentes" há escribas que metem as mãos pelos pés. Para não atribuir à religião certas ideias e crenças, e, com isso, serem objeto de críticas por quem não é religioso, apresentam-nos essas ideias e crenças separadas da religião, como se isso fosse possível. Ética e religião andam sempre juntas e não existe uma sem a outra. No Ocidente, a ética e a moral estão ligadas à religião, sobretudo à religião cristã. Mesmo os que dizem não ter religião, os ateus, têm, sem dúvida, uma cultura e vivência moldada, durante séculos e séculos, pela religião cristã. É hipocrisia e fica muito mal a quem se diz cristão e católico querer discutir a eutanásia como se este assunto nada tivesse a ver com a religião. Tem a ver com a religião e muito. Tem a ver com princípios como a existência ou não existência de Deus, com a vida para além da morte, com o criador e senhor da vida humana, etc., etc. Pretender discutir a eutanásia fora da religião é uma pura mentira, é hipocrisia daqueles que não têm coragem de se assumir como autênticos cristãos e católicos. São como os políticos que se dizem independentes dos partidos só porque têm medo de mostrar a sua cara, mas que são muito mais fanáticos que os próprios militantes. Quer queiramos quer não os nossos valores, éticos e morais, estão indissoluvelmente associados à religião, neste caso, ao cristianismo. A não ser que queiram regredir aos tempos do homem das cavernas, se bem que, mesmo aí, já havia religião.
  • João Galhardo
    12 fev, 2017 Lisboa 11:09
    O professor Sarsfield Cabral pode citar Walter Oswald no jornal «Público», sobre a marijuana, quando este afirma mal que esta substância é justamente classificada como droga. De facto, a marijuana já provou ser capaz de lutar contra doenças, como o «parkinson». Para o provar, está o filme-documentário, «Ride with Larry» (de 2013). Aconselho o professor Sarsfield Cabral e ver este documentário e a perceber o equívoco que os sistemas de governo (nomeadamente os Estados Unidos da América) criaram com esta substância, melhor que o alcóol ou o tabaco.
  • MASQUEGRACINHA
    11 fev, 2017 TERRADOMEIO 18:37
    Tive oportunidade de ler o texto de G.Franco, que achei muito bom, exatamente por tratar a questão da legalização da eutanásia fora de um contexto religioso ou cripto-religioso - ao contrário da grande maioria que tenho lido aqui pela RR. Note-se que a utilização do argumento religioso contra a eutanásia acaba por ser algo contraproducente: por um lado, para quem no mesmo crê, é como pregar a convertidos, logo inútil; por outro lado, é condenar-se automaticamente a nem sequer ser ouvido por quem não crê, e acha tal argumento espúrio, e é como pregar aos peixinhos, logo igualmente inútil. Ao comentar o artigo de G. Franco, tive oportunidade de realçar-lhe a inteligência. E é o mesmo que sublinho neste texto de S. Cabral, pelo mesmo motivo: a lei, que virá ou não, será para todos os homens, e a argumentação tem que fazer-se dentro dos limites da Razão - que é factor comum a todos os homens, ao contrário das fés. Afinal, no princípio era o Logos, não é verdade? Parece-me que o Sr. S. Cabral, aliás, se prepara para usar o mesmo método noutras questões que estarão por aí a surgir... Acho bem. Bom texto.
  • Indignada
    11 fev, 2017 Fig. de Foz 17:26
    Coitado deste senhor..., com a idade, começou a relativizar a importância de assunto vitais, caso da vida Humana, na óptica do marxismo cultural, que pela calada, pretende impor umpensamento único, ou não fossem os herdeiros do totalitarismo socialista da URSS. Os Cristãos têm a obrigação de condenar a eutanásia, sejam quais forem as desculpas apresentadas pelos entanásicos, pois é sabido que o objectivo final, é matar-sr quando a pessoa passa a ser considerada um incómodo para as sociedades egoístas, mas ditas civilizadas. Quanto ao vivermos em democracia, opinião de que sabe que tal é falso..., e por esse motivo, há que insistir nele na óptica de Lenine: "mintam, mintam sempre, pois da mentira muita coisa há-de ficar!". Se vivessemos em democracia, não haveria o elevado nível de corrupção e de incompetência. Os Tribunais seriam independentes e mais de 60% dos pulhíticos estariam na cadeia..., quem está, que %? Nunca se elogiaria quem andou a traficar diamantes e marfim com a UNITA..., ou estão esquecidos do acidente na Jamba-Angola? Nada de corte, combinadas?
  • carls
    11 fev, 2017 aveiro 15:49
    Tenho dificuldade em entender como defender a eutanásia e ao mesmo tempo lamentar o suicídio, ou mesmo condenar uma mãe à pena máxima pela morte das duas filhas.
  • João Lopes
    11 fev, 2017 Viseu 10:31
    Artigo interessante!