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Graça Franco
Opinião de Graça Franco
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​Ainda não é o fim do mundo

20 jan, 2017 • Opinião de Graça Franco


Trump não é só a sua caricatura. A partir de agora, cabe aos vários contra-poderes seguir o fenómeno de forma tão distanciada e objectiva quanto possível para conter os danos que a sua ascensão pode causar.

Vamos acreditar que nem tudo será mau. Trump é sobretudo um homem totalmente imprevisível. Mas se defini-lo assim já se tornou um lugar comum, então talvez se enganem os que têm a certeza que dele só virão desgraças. Quem sabe acabaremos tão surpreendidos quanto desiludidos face ao fracasso de Obama que entra na história sobretudo pelo primeiro dia na sua presidência. Pelo carisma da mais mobilizadora oratória e a vitória de toda a humanidade espelhada na cor da sua pele. Não é pouco, mas podia ser mais.

Fica a morte de Bin Laden, Cuba e o Obamacare. No mais somaram-se as desilusões (o crescimento do ISIS, Guantanamo, a Síria, o pífio acordo com o Irão…). A agenda fracturante que foi muito além do mero acolhimento da agenda gay ou da generalização à força da legislação abortista. Bem patente no desprezo de um aliado potencial como a Igreja (sobretudo católica), na agenda social e no acolhimento aos emigrantes. Acabou por lhe declarar uma guerra feroz nos últimos anos, impedindo a objecção de consciência dos que trabalhavam em instituições de saúde, levando-as literalmente à falência e contribuindo para o desnecessário reforço do sinistro Tea Party.

Também agora Trump não é só a sua caricatura. É, a partir de hoje, o mais poderoso homem do mundo. E, como Luís António Santos dizia aqui na Renascença, caberá agora aos vários contra-poderes, incluindo os jornalistas, desprenderem-se da sua própria cultura política para poderem seguir o fenómeno de forma tão distanciada e objectiva quanto lhes seja possível. Só assim serão capazes de fazer o teste da “verdade dos factos” da nova política. Contribuindo para a contenção dos danos que a ascensão do que parece ser “um louco” ao poder pode significar.

Se Trump mentir terá de ser escrupulosamente desmascarado. Se fugir aos impostos ou enveredar por negociatas e conflitos de interesses implacavelmente denunciado. Se atentar contra a dignidade devida a todos os americanos (mulheres, deficientes, emigrantes, afro-americanos, etc…) publicamente condenado. Mas, se apenas cumprir a agenda político-económica e social legitimada pela maioria que o elegeu democraticamente, não será pela via caricatural que poderá ser combatido. Restará o combate difícil e honesto no campo das ideias porque é assim que funciona e o exige o sistema democrático. Sem crispações desnecessárias e apelando ao interesse comum. A América primeiro não é incompatível com a defesa dos interesses comuns ao resto do mundo.

Eu sei que depois do discurso inaugural será ainda mais difícil acreditar. Mas foi apenas um discurso, mesmo se mau demais: “comprem americano e empreguem americanos” não se admite nem como slogan de campanha, quanto mais como programa de Governo. O discurso antipolítico e antipolítica (sem uma referência aos grandes princípios constitucionais, às instituições internas ou externas) resumido à promessa perigosa de um “20 de Janeiro” como o dia em que o povo volta a governar o país. A óbvia megalomania – “dezenas de milhões no cerne deste movimento” – e os avisos ao mundo (não voltaremos a gastar triliões a defender as vossas fronteiras) e, por fim, a pose tão teatral quanto as fífias da jovem talento a cantar o hino.

Já sabíamos que não basta ser um empresário de sucesso para saber governar a maior superpotência mundial. É curioso, por exemplo, ver o primeiro-ministro chinês, em Davos, a dar lições de capitalismo e globalização, defendendo os méritos do comércio livre ao Presidente americano: “Num quarto escuro estamos protegidos do vento e da chuva, mas não veremos a luz nem respiramos ar fresco.”

Não sabemos até que ponto o senhor Trump terá interiorizado já o recado da velha sabedoria chinesa, mas bastará ao novo Presidente tentar pôr em prática a sua política proteccionista de “quarto escuro”, com agravamento das tarifas aos produtos chineses da ordem dos 45% ou penalizações às empresas americanas que desloquem a respectiva produção, para começar a sentir na sua economia os efeitos da “asfixia”.

A América, cujas instituições se organizam num complicado puzzle de poderes e contrapoderes, talvez nos venha a surpreender através de uma política de muito maior bom senso do que as lamentáveis declarações feitas em campanha e fora dela pelo novo Presidente eleito nos fazem temer. Seria bom para todos. Senão, arriscamo-nos a acordar amanhã num mundo muito mais perigoso do que aquele em que adormecemos hoje. Sem esquecer que é na politica de “quarto escuro” que florescem as ideologias que proliferam nas trevas (a Ku Klux Klan de má memória que, na Europa, encontra as suas congéneres). Apontemos por isso, sem descanso e enquanto média, o foco de luz a cada uma delas obrigando-as a fugir de si próprias. E sobretudo gozemos ainda serenamente esta primeira noite.

Comentários
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  • Tito
    22 jan, 2017 Coina 10:28
    Mais uma mulher... está tudo dito! Fraquinho, fraquinho...
  • Alexandre
    21 jan, 2017 Lisboa 09:23
    A maior resposta que o povo americano pôde dar às políticas seguidas por Obama, foi votar em Donald Trump. Ou seja, quando um presidente democrata governa com políticas republicanas, os eleitores preferem votar nos republicanos. Veja-se o rumo seguido pelo oportunista Liebermann, antes vice-presidente, escolhido por Al-Gore, nas eleições de 2000. Liebermann é hoje vice, da ministra da educação escolhida por Donald Trump.