13 jan, 2017
O meu amigo Bruno Faria Lopes, jornalista da “Sábado”, colocou no Facebook uma foto maravilhosa. A imagem de 1993 remete-nos para a cerimónia de entrega dos diplomas de 12.º ano do Colégio Planalto (Opus Dei). Podemos ver o Bruno a dar um enorme aperto de mão a Mário Soares, que preside à cerimónia; Maria Barroso sorri ao lado.
Hoje em dia, na era do cancioneiro twitteiro, esta cena provocaria histeria num PS radicalizado e fracturante, um PS que esquece uma das grandes lições de Mário Soares: é necessário fechar a fractura religiosa criada pela I República; podemos ser laicos sem cair na intolerância ateia que remete a fé e as instituições religiosas para as galés, para catacumbas sem dignidade pública. Este respeito de Soares pela Igreja era antigo. Tal como Graça Franco relembrou aqui na “Renascença”, uma das entrevistas mais famosas de Soares (1972) invoca a necessidade de uma reconciliação com os católicos. Soares sabia que a III República pós-Estado Novo (a II República) não podia repetir a intolerância jacobina da I República; a nova República devia nascer na “fraternal comunhão entre católicos e não católicos”.
Naquele momento histórico (1972-74), estas declarações representavam uma corajosa ruptura com 200 anos de jacobinismo da esquerda portuguesa. Recorde-se que os nossos liberais pós-1820 mantiveram sempre uma atitude hostil em relação ao catolicismo. E claro que esta hostilidade só poderia subir de intensidade com os republicanos. Para quem não sabe, o povo de Afonso Costa matou e prendeu padres, expulsou e fez experiências eugenistas em jesuítas, humilhou o catolicismo em geral. Perante este passado liberal e republicano, as declarações de Soares não eram um pormenor; procurava-se ali o fim de dois séculos de guerra civil explícita ou implícita entre as esquerdas e os católicos. As palavras foram acompanhadas de actos.
Soares e Maria Barroso lideraram a resistência contra os ataques sofridos pela “Renascença” e pelo próprio Patriarcado durante o PREC. Além disso, não se compreende 1974-76 sem olharmos para a aliança entre Soares e a Igreja. A Fonte Luminosa, por exemplo, não teria sido possível sem a convocação paróquia a paróquia dos católicos. De resto, a Igreja era a única organização com dimensão e profundidade social para resistir ao PCP. Num certo sentido, a guerra civil larvar do PREC representou um choque entre o povo do PCP e o povo da Igreja. A grandeza de Soares esteve precisamente aqui: com a sua autoridade civil e laica, filtrou a força católica, evitando que a guerra civil larvar desembocasse numa guerra civil total. Soares diluiu o choque religioso e geográfico entre um sul comunista e um norte católico.
A nossa III República foi assim criada pela aliança dos velhos inimigos da I República. Os republicanos laicos aliaram-se aos católicos contra um inimigo comum: Álvaro Cunhal, PCP, MFA radical e os betinhos da extrema-esquerda maoista. À esquerda e à direita, julgo que se dá pouca importância a esta aliança. Obcecada com outros assuntos (descolonização), a direita despreza esta mudança histórica do centro-esquerda. À esquerda, a moderação soarista também tem sido desprezada pela nova narrativa fracturante.
Hoje em dia, alguém está a ver António Costa à cabeça de uma cerimónia num colégio do Opus Dei? Não, pois não? É essa a marca do nosso tempo intolerante. Estamos a perder liberdade e tolerância ao minuto, sobretudo devido à acção dos auto-proclamados donos da tolerância fracturante.