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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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Mário Soares: a vida e o legado

11 jan, 2017 • Opinião de José Miguel Sardica


Não há dúvidas de que a história de Portugal deverá reservar um lugar cimeiro para Soares – “o” Soares, o “bochechas”, o homem das sete vidas.

O presente de Mário Soares terminou no último Sábado, aos 92 anos e um mês de vida. Resta, desse ínclito português do século XX, o passado, que Soares viveu e construiu, e o futuro, ou seja, o legado dessa mesma vida, que a Portugal competirá honrar. Quase tudo já se escreveu sobre Soares, e não apenas nestes dias – mas muito ainda se virá a apurar, a decantar e a escrever. Esta crónica é apenas um gesto cívico de homenagem.

Não há dúvidas de que a história de Portugal (e mesmo a história internacional), deverá reservar um lugar cimeiro para Soares – “o” Soares, o “bochechas”, o homem das sete vidas políticas, cuja coragem, determinação e vontade nos deram um novo país, e cujo estilo bonacheirão, “fixe” e empático foi precursor de uma certa política de afectos.

Da campanha de Norton de Matos, em 1949, ao exílio sob o marcelismo, no início dos anos 70, Soares foi um lutador incansável pela liberdade. Entre 1974 e 1976, foi o rosto e o obreiro maior da democracia portuguesa, garantindo, por cá, que seria “Kerensky” a vencer “Lenine” (e não o contrário), e que a “revolução de Fevereiro” (em Abril), não seria engolida e anulada por nenhuma “revolução de outubro”. Entre 1976 e 1985, no poder, fazendo, ou na oposição, ajudando a fazer, foi ele o maestro da normalização democrática, com tudo o que ela implicou: a supremacia da legitimidade eleitoral, em 1976, o “socialismo na gaveta”, em 1977, o combate ao presidencialismo eanista, em 1978-79, a oposição à AD e a negociação da revisão constitucional, em 1980-82, o Bloco Central e a austeridade, em 1983-84, e, finalmente, a “Europa Connosco”, desafio visionário que o guiou (e nos guiou) para o então eldorado da CEE.

A épica vitória nas presidenciais de 1986 foi justiça poética. Freitas do Amaral teria feito um bom lugar, mas Mário Soares merecia, como nenhum outro, presidir à República que ele próprio (re)construíra – e foi ele, primeiro civil em Belém depois de seis décadas, que inventou a “magistratura de influência”, as “presidências abertas”, a “coabitação” (não sem atritos com o cavaquismo, durante o seu 2.º mandato), e tudo o mais que definiu a prática presidencial desde então.

No auge da sua carreira política, Soares teve a sorte de viver tempos apaixonantes, de mudança e esperança, em que tudo estava por fazer e em que a política era, de facto, um turbilhão de ideias novas, de debates e controvérsias largas, de rupturas e consensos nacionais. Soube, como ninguém, fazer a história, em vez de apenas a ver passar, e fazê-la como estadista, com os olhos postos num horizonte de longo prazo. Sim, a partir de 1996, depois de uma década em Belém, podia ter-se reformado.

Mas Soares foi, até ao fim, visceralmente, um (grande) político. A irrequietude e o radicalismo dos últimos anos poderiam ter-lhe sido desaconselhados. Mas até nisso ele demonstrou ser um espírito livre e indomável. Percebe-se, recordando a sua personalidade e feitio, que o mundo de hoje – de um Ocidente crepuscular e amedrontado, de uma Europa burocratizada, de um Portugal pessimista e de uma política, em geral, reduzida à finança – já não era o seu mundo. Mas o que de melhor a liberdade, a democracia e a Europa nos deram tem a sua mão. E mesmo os seus críticos (a propósito da descolonização ou de outros temas) terão de lhe agradecer – porque é graças a Soares que existe o direito e a possibilidade de dizer mal de Soares. Talvez enfrentemos hoje a hipótese de muito daquilo por que ele se bateu estar em risco e poder não ser eterno. E é por isso que o seu exemplo de vida – uma vida cheia e feliz, como recordaram os seus filhos na tocante homenagem fúnebre – é o seu legado para a posteridade, para que a sua obra continue e inspire, transitando do passado para o futuro.

Comentários
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  • Indignada
    14 jan, 2017 Fig. Foz 02:37
    Este sr. já foi entalado por um meu familiar (embora o considere simpático) há uns anos na casa Veva de Lima, onde ridicularizou as cerimónias de homenagem aos soldados portugueses (feitas no Dia de Portugal, 10 de Junho, até à data da perfídia), que combatiam os terroristas no Ultramar, financiados pelos socialistas soviéticos e pelos gananciosos norte-americanos..., ou não? Cerimónia à semelhança das que faziam os norte-americanos, franceses, ingleses, etc.... Denoto que limita-se a debitar uma cassete totalitária, de pensamento único e falso... e compreende-se porquê. Como o só ares não deixou uma OBRA à semelhança do Estadista, nem um país mais rico, com menos pobreza, sem dívidas/bancarrotas, sem criminalidade, etc..., há que branqueá-lo à custa de fabricar um cenário falso sobre o PREC, como se o PPD, CDS e outros, não estivessem interessados em fazer frente ao PCP, com o apoio da NATO..., ou esquecem-se que a 7.ª Armada dos EUA andava próxima de Portugal nessa altura? Norton de Matos, o calígula de Angola, como Cunha Leal o apelidava, foi "democraticamente" promovido de major a general, típica atitude dos republicanos e maçãos, caso do Soares e Sócrates. Além do mais, como já referi por diversas vezes, Soares é o pai do aborto=matança de Inocentes e das clínicas de extermínio..., pode um cristão (que vai à Igreja bater com a mão no peito) elogiar tal figura (das trevas)? Jesus Cristo deu um nome a quem se comporta desta forma..., sabem qual foi? Nada de censura!
  • João Galhardo
    13 jan, 2017 Lisboa 09:23
    «Entre 1974 e 1976, foi o rosto e o obreiro maior da democracia portuguesa...» Segundo factos reais, em 28 de Setembro de 1974, Mário Soares esteve com Henry Kissinger nos EUA. Onde estava Mário Soares no 11 de Março de 1975? Novamente com Henry Kissinger. Ou seja, nestas duas principais datas de uma revolução, Mário Soares está com um criminoso de guerra que está por detrás do golpe que ajudou a derrubar o presidente chileno, Salvador Allende. Será este um facto que dá orgulho pelo passado de Mário Soares na política?
  • Ângela Veloso
    12 jan, 2017 Vila Franca de Xira 14:51
    É embaraçoso e triste ver Miguel Sardica a censurar comentários. Vai contra aquilo que escreveu sobre Mário Soares.
  • Marco Visan
    12 jan, 2017 Porto 09:31
    Gostaria de perguntar ao Sr. Sardica porque razão a RTP não transmite o debate político entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, em 1982, moderado por José Eduardo Moniz?
  • Alexandre
    11 jan, 2017 Lisboa 19:50
    Espero que a Renascença, nem o Sr. Miguel Sardica censurem este meu comentário. Gostaria de lembrar, por esta altura, que Mário Soares lutou contra a censura neste país. Foi esta luta que fez com que o país rejeitasse o lápis azul imposto pela ditadura durante 48 anos. Vir aqui censurar comentários não fica nada bem. Finalmente, o texto do Sr. Sardica peca por tardio. Este texto deveria ter sido publicado antes e não agora.
  • MASQUEGRACINHA
    11 jan, 2017 TERRADOMEIO 18:42
    Transitando do passado para o futuro, sim, no que toca a uma ideia geral de ser necessário coragem e determinação, nunca desistir de lutar mesmo quando se é vencido, etc. Já quanto aos métodos, o tal pragmatismo circunstancial, o jogo da rosa-gaveta-punho, serviram sem dúvida o objetivo de transformar o recém-desenterrado Lázaro que era Portugal numa criatura minimamente apresentável. Mas, numa visão mais funda, foi exatamente esse tipo de métodos, de conceptualização do processo político "eficiente", que acabaram por trazer as democracias liberais do mundo inteiro até aqui, até à beira do abismo. Até ao descrédito, quase ao desprezo, pela política e pelos políticos; até à utilização conscientemente irracional do voto - que, como diziam os outros, é a "arma do povo", e que na atualidade o povo parece usar, literalmente, como uma arma. A Democracia está em estado grave: e foram políticos como Mário Soares que a puseram doente e não conseguiram, ou não quiseram, aperceber-se do agravamento do seu estado. Não o fez intencionalmente, claro, que muita gratidão lhe é devida, como já disse. E, quem sabe? Talvez se tenha apercebido, demasiado tarde, do monstro que ajudara a criar. Sendo Soares história, esperemos que no futuro, que terá que ser breve, aprendamos com os erros da história.
  • José Seco
    11 jan, 2017 Lisboa 13:54
    Enquanto Soares e outros tantos passaram pelo poder e fizeram o que bem lhes apeteceu o povo emigrou e continua a emigrar por causa destes governantes todos. Não faltaram também ao longo de todos estes anos polémicas em torno de Mário Soares. Por conseguinte parece-me que se cai no exagero sobre a forma como se continua a homenagear a classe política portuguesa. Merecem respeito na hora da morte como qualquer ser humano mas não merecem mais do que isso porque se serviram bem do poder à custa dos sacrifícios do povo!
  • ANTÓNIO PEIXOTO
    11 jan, 2017 PORTO 11:42
    Nasci em 1971. Vivi a democracia que ele e tantos outros, anónimos até, construíram. Obrigado. texto magnífico.