Tempo
|
Luís António Santos
Opinião de Luís António Santos
A+ / A-

"Mas o que é que ele fez por nós?"

09 jan, 2017 • Opinião de Luís António Santos


Muito do que se escreve em tom desrespeitoso sobre Mário Soares por estes dias tem precisamente esta marca - "o que é que ele fez por nós?

Tinha uma alegria que transbordava para fora de si. Para os outros. Fossem eles quem fossem. Tivessem eles as ideias que tivessem. E é pensando precisamente nesse espírito - de um contentamento cheio, completo, honesto - que leio muito do que se escreve com desdém e gáudio nas redes sociais a propósito da sua morte com uma serenidade que, espero, pudesse ser parecida com a sua.

Devo dizer que li coisas inenarráveis neste dias. Vi coisas que julgaria impossíveis (algumas delas ilustradas com imagens de garrafas de espumante). Mas dei por mim a pensar em todo esse emaranhado indigno de revolta e insulto à luz de uma cena magnífica de um filme brilhante dos Monty Python, "A Vida de Brian" (sobre a existência de alguém que nasce no mesmo dia que Jesus Cristo, nas mesmas circunstâncias, e que passa a vida a ser confundido com o Filho de Deus).
Na tal cena - que tem um nome mais ou menos nestes termos: “Antes dos romanos é que as coisas eram boas”- um grupo de rebeldes anti-Roma reúne em segredo e discute formas de contrariar Pilatos. A dado momento alguém diz: “O que é que eles alguma vez nos deram?” e as respostas vão se sucedendo, de forma hilariante: os aquedutos, as estradas, a irrigação, a medicina, a educação, etc., etc., etc.

Muito do que se escreve em tom desrespeitoso sobre Mário Soares por estes dias tem precisamente esta marca - "o que é que ele fez por nós, um filho de gente rica que fugiu para um exílio dourado em França, que se fez político à pressão, que destruiu a vida de milhares de portugueses nas ex-colónias e que sempre fez acordos com tudo e todos para se manter à tona? Sim, o que é que ele fez por nós?"

Eu - que até sou um desses milhares de pessoas a quem o pós-25 de Abril mudou radicalmente a vida - diria que para além de ter evitado uma deriva totalitária, para além de ter ajudado ativamente a criar um sistema multipartidário numa jovem democracia, para além de ter participado (com enorme habilidade política) na resolução de um processo de descolonização monumental para o qual não haveria nunca uma só solução satisfatória, para além de ter conseguido o apoio do PSD para tornar a Constituição da República mais democrática e menos militarizada, para além de ter liderado a entrada do país na Comunidade Europeia, para além de ter inaugurado um exercício da presidência da República com intervenções relevantes em temas sociais, para além de ter, já mais em fim de vida, apontado as falhas graves ao projeto europeu, para além de – num momento em que já mais nada dele se poderia esperar – ter ainda liderado uma campanha cívica em defesa de um Estado mais presente na vida dos cidadãos e para além de ter feito tudo isto sempre e apenas ao serviço de ideias políticas (longe, portanto, das administrações das grandes empresas ou das poderosas instituições bancárias que agora parecem ser, elas sim, o principal objetivo de vida para alguns dos políticos que temos), será verdade, de facto, que Mário Soares não fez grande coisa por nós. Fez pouco, sim. Menos, certamente, do que teria querido.

O filme que usei como referência termina com uma música cujo refrão é o seguinte: “Olhemos sempre para o lado bom da vida”. Se mais nada nos disser, que ao menos a memória de um Mário Soares tolerante, corajoso e divertido nos possa dizer a todos isto.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • mara
    31 mai, 2017 Portugal 20:28
    Correu Mundo, comeu, bebeu, teve uma grande vida, como socialismo é igualdade deu-nos a todos uma vida igual à dele!
  • Fernando Martins
    10 jan, 2017 Porto 09:31
    Na verdade, eu tenho muito mais respeito por ele agora que é defunto, do que enquanto foi vivo. Foi sempre um homem arrogante, convencido, pouco honesto, nada humilde, enfim, olhou sempre para o umbigo dele. Paz à sua alma. Eu sempre tive e tenho muito respeito pelos defuntos, e claro, pela família deles, muito embora o filho seja igual, ou pior do que o pai.
  • MASQUEGRACINHA
    09 jan, 2017 TERRADOMEIO 19:11
    Concordo com o que o articulista escreve. Acho, até, que Mário Soares adoraria o seu próprio funeral, toda aquela magnificência bacoca, perdão, barroca, ressuscitada para o honrar, hipomóvel incluído, seja lá isso o que seja. Ou talvez não.Talvez achasse um disparate, e dissesse, naquele seu jeito tão próprio "Olha que disparate!". Talvez preferisse a singeleza de dezenas de milhares de portugueses de cravo na mão na rua a dizer-lhe adeus, de ter amigos e companheiros de uma vida a alancarem-lhe com o caixão, de ouvir um coro de milhares de vozes a cantar-lhe o hino do partido na hora de descer à terra... Creio que entre as muitas qualidades de Mário Soares, designadamente a sua corajosa defesa da democracia e, logo, dos interesses do povo, não se contava a de amar genuinamente o tal povo, o povo concreto, aquele que, como dizia a Susaninha do Quino, "deixa tudo sujo com nódoas de sandes de chouriço". Não por desprezo, mas por feitio. E mesmo aqueles que o admiravam e respeitavam, que lhe estavam gratos, também nunca conseguiram amá-lo, ao bon vivant pragmático que amava mais a democracia que o povo. Posso imaginá-los agora aos dois, o Mário a dizer ao Álvaro: "O meu funeral foi melhor que o teu, foi de estadão!", e o Álvaro a responder-lhe, com um sorriso fino: "Olha que não, olha que não!". Ou, para não o magoar, talvez lhe diga, ao estilo d'O Principezinho: "Tiveste menos gente, mas foi por causa do hipomóvel, as pessoas têm muito medo dos hipomóveis".
  • JULIO
    09 jan, 2017 vila veade 16:34
    Ele so fez o que os americanos mandaram eliminar o prigo de uma ditadura comonista , ele depois aproveitou o pode para ele e familia
  • Alberto
    09 jan, 2017 FUNCHAL 15:25
    Mais 2 dias ... e o 25 de Abril teria sido feito SÓ por ele, a Descolonização não tem nada com ele; a falsa agressão da Campanha passou a real, etc, etc!! Que teve o seu contributo...ninguém nega; mas querer um HERÓI isolado...é hipocrisia.
  • ALETO
    09 jan, 2017 Lisboa 14:39
    O que ele fez por nós? Boa pergunta. Resposta mais certa: Nada. Resposta exagerada: Fez tudo. Como é que ficamos?