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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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NEM ATEU, NEM FARISEU

O suicídio não é um direito

16 dez, 2016 • Opinião de Henrique Raposo


O suicídio só pode ser um acto individual, não pode ser uma prática colectiva. Não pode ser um acto médico. A medicina serve para salvar vidas, não para exterminá-las.

Chamemos-lhe Joana. Tem uma doença terminal, vive sozinha, vive com dor, já pensou em cometer suicídio mas recuou na hora final. Agora pede eutanásia ao hospital. Não a censuro. Como escrevi no livro “Alentejo Prometido”, não julgo os meus antepassados que cometeram suicídio.

Cada suicida é um caso literário que merece amor, mesmo que seja um amor retroactivo e impotente perante o acto consumado. Há contudo uma diferença entre um suicida clássico e pessoas como a Joana. O suicida mata-se, não transfere a decisão fatal para outras pessoas. O nó à volta do pescoço e o passo no vazio são os actos finais de uma liberdade radical. A Joana, por sua vez, quer transferir para os médicos o ónus da decisão.

Lamento, mas isto não é aceitável. Se não podemos fazer nada para evitar o suicídio clássico, se não podemos evitar o nó da corda, a água do poço, o chumbo da caçadeira ou o veneno do 605 forte, já podemos fazer tudo para evitar este suicídio assistido. Aliás, a expressão “suicídio assistido” devia ser contradição em termos.

O suicídio só pode ser um acto individual, não pode ser uma prática colectiva. Não pode ser um acto médico. A medicina serve para salvar vidas, não para exterminá-las. Não pode ser um acto familiar. A morte lenta de um pai ou avô não é um problema para ser resolvido, é um fardo que tem de ser suportado com humanidade. Não pode ser um valor social. O suicídio não pode ser um direito adquirido.

Se ainda está consciente e móvel, a Joana tem a liberdade radical para cometer suicídio. Se já não está consciente e móvel, se já está minada pela dor, então temos de fazer uma pergunta: que livre arbítrio resta numa pessoa dominada pela dor? Qual é a validade de um pedido de morte feito no absoluto desespero? O dever da sociedade não é validar o desespero da Joana. O nosso dever é ouvi-la, é fazer tudo para minorar aquele sofrimento. Até porque o pedido de eutanásia de Joana é mais um sinal de tristeza do que de dor física, é mais um sinal de solidão do que de sofrimento insuportável, é mais falta de amor do que presença de chagas. É por isso que a discussão devia estar na extensão dos cuidados paliativos. Não se trata de fazer a apologia da dor. Trata-se de dizer que a vida humana é sagrada. Numa época em que se acredita em tudo, como é que não se acredita na inviolabilidade da vida humana?

Os defensores da eutanásia como Joana falam em “morte com dignidade”. Mas o que é isso de morte com dignidade? A meu ver, julgo que se confunde dignidade com autonomia corporal. Qualquer limitação a essa autonomia é vista como um atentado à vida humana. É como se a motricidade mecânica do corpo fosse um critério moral. Pior: é como se fosse o único critério moral. É como se não existisse transcendência, alma, consciência, é como se fôssemos apenas a imanência dos fluidos, químicos e tecidos do corpo.

A Joana pode pensar que é apenas um corpo, mas a sociedade tem de ver nela algo superior a essa entidade corpórea. A vida não é uma mera existência biológica.

O nosso critério moral não é a perfeição médica. Se aceitarmos esse critério médico e “amoral”, acordaremos num mundo que não reconhece “utilidade” mecânica num idoso com Parkinson, por exemplo, acordaremos num mundo que olha para a morte de gente considerada menor como uma remoção higiénica. Já estivemos mais longe deste deserto amoral.

Comentários
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  • Filipa
    04 fev, 2017 Lisboa 13:08
    É contra? Fico contente. Deus está orgulhoso de si! No entanto quem é para julgar os outros? Deu exemplo de uma Joana, certamente verdadeiro, mas pergunto que suicidio faria a Joana? Enforcamento? Afogamento? Tiro? E a arma? Já sei... comprimidos. Caso a coisa não dê certo a vida só pode ficar um bocadinho pior, nada de mais. Quer dar a sua opinião? Tem todo o seu direito, mas deixe quem nada mais tem ser ajudado a terminar com o terror da sua vida. Deus permita que nunca tenha de ser totalmente dependente para fazer tudo. Ou que sofra de dores tão horríveis, que nem a morfina o ajudam. Depois... falaremos!
  • Miguel Rodrigues
    03 fev, 2017 Braga 00:08
    O desenvolvimento crítico explorado é muito interessante e parece-me pertinente ainda colocar mais pontos que na minha óptica seriam pertinentes. O que é um direito? Tantas vezes referido este vocábulo mas alguém sabe o que realmente significa? Do ponto de visto ético, um direito é algo que visa a gradual humanização do ser humano, ou seja, este se torne "mais humano". Como se poderá humanizar alguém viabilizando o direito à eutanásia? A expressão "direito a uma morte digna" é uma contradição em si mesma, pois a morte não humaniza. Outro tópico seria a questão do sofrimento inerente a estas situações limite. A morte é vista apenas como a solução fácil para acabar com o sofrimento, mas sendo o sofrimento condição inerente à condição humana como o podemos combater? Quando sofremos por alguma coisa, o que nos torna melhores? Não será amor, carinho e atenção, que pelo menos aliviam a pressão emocional. Viver o sofrimento é o ponto mais importante que nos liga ao amor. Sofremos por quem amamos e quem nos ama sofre por nós. Ainda teremos em consideração aquilo a que chamamos o nosso ser. Afastando-me de uma visão dualista corpo/alma, coloco a questão do nosso ser. Será esse ser exclusivamente uma experiência biológico-corpórea? Não será apenas isso, também todas as nossas relações sociais e pessoais entre outras acções quotidianas. Também os nossos sofrimentos contribuem para caminhar no sentido da realização plena do ser, não devendo assim, ser visto apenas negativamente...
  • Rui
    02 fev, 2017 Porto 10:31
    Isto vai acabar como o aborto se for a avante, era só para situações extremas e agora é um método contraceptivo, a eutanásia vai pelo mesmo caminho, pensem, se actualmente há famílias que abandonam idosos nos hospitais como se abandona um saco lixo imaginem as soluções que a Eutanásia abre! Vem com heranças incluídas e tudo! Na Holanda de Eutanásia já morreram 5000 pessoas é muito caso extremo não é?
  • João
    01 fev, 2017 Matos 16:44
    Raciocínio bem desenvolvido. Encontro neste texto uma perspectiva válida, tal como noutros que já li que expressam pontos de vista semelhantes. É uma temática extremamente complexa e que tendencialmente tem suscitado opiniões demasiadamente pessoais, subjectivas, egoístas e, sobretudo, teóricas. Bastaria uma visita, de todos os opinadores, a algumas unidades de cuidados intensivos do nosso país, para perceberem que a fronteira de que falam está (muito) longe de ser tão nítida quanto gostaríamos. Julgo que nos deparamos com isso tentando responder a duas perguntas simples: 1) deve o direito à eutanásia ser generalizado? Talvez não, pelo exemplo dado no texto; 2) se não for generalizado, vamos acentuar o sofrimento e a futilidade da existência de algumas pessoas, mesmo que não a maioria? Vamos, não tenho dúvidas. E agora, em que ficamos?
  • Alexandre
    19 dez, 2016 Lisboa 09:08
    Talvez não fosse má ideia recomendar a Henrique Raposo a leitura da obra de Roger Martin du Gard, «Os Thilbaut» (em especial, o segundo volume), onde a questão da eutanásia é abordada.
  • MASQUEGRACINHA
    18 dez, 2016 TERRADOMEIO 20:23
    Todos os dias - mas todos os dias mesmo - agradeço por não me encontrar em certas situações, ou ter de tomar certas decisões. O sofrer uma dor intolerável e irremediável, ou assistir a alguém sofrê-la, é uma dessas situações; e o decidir vivê-la ou por-lhe fim é uma dessas decisões. Não sei, sinceramente, o que faria - e invejo quem tem todas as certezas. Mas há uma coisa que sei: em relação a um terceiro, se fosse deveras a compaixão o que me movesse a auxiliá-lo a por fim ao seu sofrimento, nada me deteria, e muito menos o medo da prisão. E suponho que seja isso o que se passa, e sempre se passou, em muitos casos, mesmo envolvendo profissionais de saúde, familiares, amigos. Parece-me que o melhor será que assim continue, dependente de um acto pessoal, o suicídio, ou da coragem e misericórdia de terceiros. Os sinais que nos chegam dos países que legalizaram alguma forma de eutanásia são assustadores, e a ganância e outras taras humanas aproveitam todas as janelas de oportunidade. De facto, o que é morrer com dignidade? Não sei, mas sei que os horrores da pura tortura física nada têm de digno - e é apenas quanto a este tipo de sofrimento limite que aceito a possibilidade da intervenção de terceiros. Mesmo os romanos abreviavam a vida dos crucificados, suponho que para lhes pouparem mais sofrimento. E as crianças, as crianças em tortura sem remédio nas alas pediátricas, Sr. H. Raposo? Que sabem elas de transcendência, alma, consciência? Nem sequer ainda sabem temer a morte...
  • ALETO
    17 dez, 2016 Porto 09:00
    Suicídio, aborto, drogas, são os efeitos ou causas de uma sociedade doente e decadente, como esta que estamos a viver. Precisamos de políticas que assegurem o ser humano à vida, tornando a educação, a saúde e a habitação como livres (e não pagas). São as condições essenciais para que a sociedade se torne melhor.
  • António Costa
    17 dez, 2016 Cacém 02:44
    O Henrique Raposo, é o "Henrique Raposo do Alentejo Prometido" ? Existiu muita polémica com o seu livro. Como sempre, preferi ler primeiro o livro antes de emitir opiniões sobre aquilo que não conheço. Como por acaso tenho antepassados na Beira Alta e no Alentejo obtive dos dois lados histórias que remontam ao séc. XIX. As invasões francesas estavam presentes nas histórias dos meus antepassados do Alentejo (zona de Beja), enquanto na Beira (zona da Guarda) ouvi as disputas da guerra entre "Liberais" e "Miguelistas". A minha mulher estudou, mas é de família de pessoas analfabetas e a descrição que faz no seu livro sobre a "aldeia alentejana" assenta como "uma luva" a uma aldeia da Beira Litoral. E o que tinham de comum estas duas aldeias? O analfabetismo e a pobreza extrema. Seguindo, o meu avô da Beira ainda tinha uma espingarda e um par de "colts à far west". No norte a abundancia de água, caça e esconderijos eram um convite a existência de gangs tipo "Zé do telhado". O Alentejo era mais "pacato", o meu bisavô tinha apenas uma espingarda e a passagem de malteses (a "internet" da época) pelo monte era feita sem sobressaltos. O Alentejo tem de fato a problemática do "suicídio" muito forte, e nessa acertou em "cheio".
  • António Costa
    16 dez, 2016 Cacém 15:01
    Li os comentários anteriores mas existe uma situação que esta a "passar ao lado". A informática permite hoje coisas que eram ficção cientifica à apenas uns anos: Bases de Dados com informações Genéticas de "Possíveis Dadores". Um membro da MAFIA precisa de um transplante urgente. O Acesso às Bases de Dados permite imediatamente, "na hora", saber que existe um "João compatível", morada incluída. O "João" que podia ser perfeitamente salvo é "eutanasiado" e os órgãos necessários passam para o paciente "rico". Isto já aconteceu e à medida que a informação genética dos "pacientes" vai tornando as Bases de Dados mais completas, vai-se tornando cada vez mais frequente. Bem vindos ao "Admirável Mundo Novo".
  • João Galhardo
    16 dez, 2016 Lisboa 12:59
    Por aquilo que Henrique Raposo acaba de escrever e pelo comentário de João Lopes, estamos a assistir ao reaparecimento de uma sociedade cruel. Não há misericórdia perante os que sofrem e querem morrer para pôr fim ao sofrimento. Perante o espírito carrasco, como Henrique Raposo e João Lopes, são obrigados a sofrer até ao fim.