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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu, nem fariseu

Cochichar com os mortos

28 out, 2016 • Opinião de Henrique Raposo


A cremação retira-nos parte do processo de luto, torna a cena demasiado técnica, mecânica, amoral, quando se quer uma cena telúrica, orgânica, moral.

É uma discussão recorrente nos jantares de família: depois de muito espernear, a minha mãe decreta que o seu corpo deve ser cremado após a morte; na resposta, digo que tudo bem, sim senhora, mas tens de deixar isso lacrado num notário, porque, se depender de mim, vais ser sepultada. Os animais podem ser queimados, as pessoas não. Os mortos só se queimam se os quatro cavaleiros do apocalipse andarem a fazer das suas. Ora, alguém tem visto por aí o Armagedão? Não, pois não? A igreja tem toda a razão quando diz que os mortos devem ser enterrados debaixo de sete palmos de terra. Até porque a cerimónia da morte é para os vivos, não para os mortos. E o ponto é que a cremação retira-nos parte do processo de luto, torna a cena demasiado técnica, mecânica, amoral, quando se quer uma cena telúrica, orgânica, moral. Por exemplo, ver o caixão a entrar naquele pequeno abismo pode ser chocante, sem dúvida, mas é um choque necessário ao luto, tal como o simples gesto que é atirar uma mão cheia de terra lá para dentro - um adeus derradeiro que não é possível no crematório.

Por outro lado, a cremação concentra a cena num só dia. Depois do procedimento, os familiares recebem uma urna com cinzas que espalham nesse mesmo dia num local escolhido pelo falecido. Se não se importam, este paganismo está 4000 anos atrasado. A morte assim deixa de ter uma morada concreta. E, sim, a morte precisa de código postal, porque o luto é um processo que leva anos a estar concluído. É preciso visitar e revisitar a morte. É por isso que antigamente usávamos o Dia de Todos-os-Santos para visitar cemitérios e não centros comerciais. Lembro-me bem da força que esse dia nos dava quando era garoto. Os meus avós morreram em 1987 (ele) e 1996 (ela) e, de ano para ano, a dor foi sendo diluída no ritual do Dia de Todos-os-Santos. Eu, o meu irmão e os meus pais voltávamos ao bairro, almoçávamos com a família alargada, depois da bica íamos a pé até ao cemitério, comprávamos flores nas senhoras à porta e dirigíamo-nos, cada um a seu ritmo, às campas. De herança alentejana, não tínhamos educação católica, mas ali o que menos interessava era o formalismo. O que interessava era a forma como cada um de nós falava com a avó e com o avô. A minha mãe não falava. Eu cochichava. Enquanto limpava a campa, a minha madrinha falava mesmo a sério como se eles estivessem ali. No final, voltávamos da morte mais conciliados com a vida. Regressávamos a sorrir, bebíamos chá de cidreira numa algazarra, lanchávamos junto da lareira. Se o dia fosse perfeito, terminava com um jantar regado com um jogo do Benfica na TV.

Voltei sempre mais vivo deste cochicho com a morte. Um cochicho que agora quero refazer. Os meus avós maternos já não têm morada terrena, mas agora os meus avós paternos estão lá enterrados no mesmo cemitério junto à A1. Quero refazer o ritual, quero passá-lo às minhas filhas: a mesma mesa, o mesmo passeio, as mesmas flores, o mesmo cochicho, o mesmo regresso para a lareira, tudo já a pensar no dia em que a avó delas subirá à eternidade sem passar pelo crematório.

Comentários
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  • Vera
    04 nov, 2016 Palmela 22:07
    Tem toda a razão, Henrique Raposo! o crematório, não é para gente que acredita em Deus! Queimar um corpo é uma sensação esquisita, de que estamos a torturar a alma, daquele que faleceu! que esperava ter a nossa visita, de vez em quando. O cemitério é um local sagrado! um local que serve de ponto de encontro, entre almas vivas e almas mortas. O estar debaixo da terra? não é a alma que está debaixo da terra! a alma sai, vai para junto de Deus (na minha opinião)! e o nosso ponto de encontro é programado por Deus...
  • Ângela Ribeiro
    28 out, 2016 Porto 19:12
    Mas pode colocar as cinzas numa gaveta e fazer tudo igual. Até num jazigo podem ser colocadas, se assim o quiser. Compreendo a sua mãe. Sou católica, sou catequista, rezo todos os dias com o meu marido e os meus filhos, sou vicentina, tento viver em sintonia com a fé que professo. Mas assusta-me a ideia de estar dentro de um caixão a sete palmos da terra. Cresci a ouvir histórias de gente que acordou lá dentro, tenho um pouco essa fobia. Compreendo o Henrique, mas sempre imaginei que não seria contra o meu Deus, ser cremada, cinzas num pote e pote numa gaveta, onde os meus pudessem cumprir os rituais. Já agora porque é que a mãe quer ser cremada?
  • Pedro
    28 out, 2016 Estoril 18:01
    O articulista vai tão embalado na sua cegueira insensível que nem se dá conta que as considerações que tece sobre a cremação e o enterro pecam todas por falsidade, dado que em várias civilizações uma e outro permanecem actuais, sendo o enterro bem mais antigo do que a cremação, nem sequer entrando nos detalhes mais suculentos da tradição cristã de queimar os hereges na fogueira. Em qualquer dos casos trata-se de respeitar uma vontade alheia, que desde logo manifesta não ter intenção de fazer, o que determina a sua (in)capacidade relacional e empática. Escrita a metro, sem maturidade, puramente demagógica.
  • António Domingos Men
    28 out, 2016 Setubal 17:49
    Discordo!!! A minha mãe quis ser cremada e disse-me o que queria que eu fizesse às suas cinzas. Respeitei integralmente a sua vontade. Resultado: 1) Fiz o luto. 2) O ter respeitado a sua vontade deu-me muita tranquilidade, muita serenidade. PS: Confesso que acho desnecessário o ritual habitual dos finados. Acho que é mais "show" para os outros do que outra coisa.
  • Lucinda de Jesus
    28 out, 2016 Oeiras 16:22
    Excelente!
  • Masquegracinha
    28 out, 2016 Terradomeio 15:50
    Para lá de eventuais considerações sobre cremação ou inumação, não parece ao caro articulista que se apresenta como um filho arrogante, egoísta e desrespeitoso? Arrogante porque, permanecendo vivo, fará o que bem entender; egoísta e desrespeitoso porque o desejo expresso da sua mãe não lhe interessa para nada, não lhe deve obediência nem sequer complacência. Porque não coloca as cinzas no cemitério e faz todo aquele alegre resto que tão vivamente nos descreve? Qual é, de facto, o seu problema? Releia-se e cresça.
  • Maria Manuela Nunes
    28 out, 2016 Queluz 10:20
    Respeito a sua opinião assim como respeito a dos que preferem a cremação. Estou entre os últimos. Quando entro num cemitério e vejo a quantidade de campas ao abandono, esburacadas e sem que ninguém as visite, penso quão breve é a dor de que fala e o luto de quem acompanhou o falecido.