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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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A República e os outros

05 out, 2016 • Opinião de José Miguel Sardica


Na Europa de 1910, só a França e a Suíça eram repúblicas. A República portuguesa destoava, sobretudo pelo seu veio radical e jacobino.

A República portuguesa comemora hoje 106 anos de história. Não foi fácil afirmar-se como regime quando surgiu, em 1910; não é fácil a situação em que vive, em 2016. Claro que o caminho foi de progresso, desde os primórdios até ao presente, nos avanços e recuos das três Repúblicas que já governaram o país; mas foi também pejado de problemas, desafios e peripécias, tanto no plano interno, como no plano externo.

Na Europa de 1910, só a França e a Suíça eram repúblicas. A República portuguesa destoava, sobretudo pelo seu veio radical e jacobino, e foi objecto de muita desconfiança e pressão diplomática internacional. Os republicanos tiveram de enviar a Londres, no verão de 1910, uma delegação destinada a pedir licença ao Foreign Office para fazerem a revolução. E depois do 5 de Outubro, o reconhecimento internacional do novo regime foi chegando após esperas desesperadas e embrulhado em reticências e avisos.

Na cena internacional, o novo Portugal republicano não podia fazer o que propagandeara ou o que desejava, mas o que era possível ou o que o deixavam fazer. A aliança inglesa fazia as vezes de União Europeia: Portugal tinha com Londres uma relação bipolar, oscilando entre a anglofobia e a anglofilia, entre a bravata e a subserviência. Em 1910, era um país pobre e atrasado, dependente do exterior, militarmente fraco, mas politicamente voluntarioso. Para resgatar a pátria da propalada decadência monárquica, a República sempre alimentou sonhos de grandeza – a participação na I Guerra Mundial, desastrosa e de dramáticas consequências, resultou desse impulso de “fazer peito” tanto às oposições internas, silenciadas perante uma tal causa nacional, como às potências, que teriam de respeitar e admirar um tal companheiro de armas ou oponente bélico.

O cenário internacional era, por seu turno, dos mais confusos e incertos. Blocos de alianças rivais dividiam o continente e criavam um clima de “paz armada”; a guerra era já uma possibilidade, e somente seria evitável por acordos em que as grandes potências se entenderiam à custa da posição europeia ou do património colonial dos “pequenos”. Neste xadrez, Portugal perderia sempre. A própria noção de comunidade liberal internacional, com mecanismos de segurança colectivos, e a velha crença na supremacia europeia sobre o mundo, estavam a ser abaladas.

A Alemanha parecia imparável, a Inglaterra despertava do seu “esplêndido isolamento”, a França nutria sentimentos revanchistas, a Rússia parecia fragilizada perante o Japão, os EUA espraiavam-se pelo Atlântico e espreitavam já uma tutela sobre a Europa, enquanto, aqui ao lado, a Espanha monárquica e conservadora era um perigo constante por causa dos sonhos iberistas de Madrid. Não podendo voltar costas a este caldeirão europeu, a República também não podia descurar outros laços – com as colónias de África, que tinham de ser pacificadas, rentabilizadas e defendidas; e com o Brasil, onde a comunidade de língua não impedia uma larga desconfiança em relação ao esquerdismo reinante em Lisboa.

A história da inserção da I República portuguesa na comunidade internacional foi sempre, e até 1926, um calvário cheio de escolhos e sustos, grandes esperanças e grandes desilusões, vivido num ambiente de vulnerabilidade e sensação de cerco. É a sina dos pequenos países, sobretudo quando os grandes conflituam. Desde 1910 a 2016, não deixámos de ser pequenos num mundo com vários grandes e vários problemas. Pensar nisto tem de ser parte importante da política dos dias de hoje.

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