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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Living History

27 set, 2016 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


O início da minha adolescência foi marcado pela figura de duas mulheres impressionantes, numa época em que a vida política estava muito menos mediatizada do que hoje e quando a provinciana janela portuguesa sobre o mundo bastantes vezes se resumia ao esforço da propaganda norte-americana.

Hoje tenho as minhas dúvidas sobre a distinta feminilidade da liderança de Indira Ghandi ou de Golda Meir, mas o interesse e o sentimento de admiração provocados pelo calmo halo de poder que as envolvia ainda são fortes. E quando hoje (26 de Outubro) Hillary Clinton descansa – espero eu – para enfrentar o primeiro debate (dizem os civilizados) com o seu oponente (vício linguístico de democratas), a figura das duas damas surge-me, profética e exemplar.

À distância também tendo a ler a vantagem de Obama, contra Clinton, que lhe disputou a nomeação e depois o serviu lealmente num lugar chave, como o conjunto das virtudes produzidas pela intercepção das redes sociais com «o» slogan e «o» mágico sorriso sedutor. E noto que, quando já se adivinhava o êxito eleitoral do Sidney Poitiers da política – e a «questão negra» apaixonava o meio mundo apaixonado por Barack – e Carol Moseley Braun, a primeira afro-americana eleita para o Senado norte-americano (1993-99), foi inquirida pelos meios de comunicação social quanto ao racismo com que se debatera na sua carreira política, depressa desenganou tais corações inflamados, reclamando, peremptória, que o que sentira na pele não fora a negra mas a mulher.

Parece que Clinton também concorrerá com o oportunista desequilibrado que é Trump dotada dessa imensa desvantagem – uf uf para o penteado, as filhas, mais a pneumonia – quando a reacção final do eleitorado feminino nos ‘swing states’ é, actualmente, o maior mistério da ciência política. Este verão li a sua biografia, que merece a pena, o tempo e o trabalho. Uma biografia autorizada é sempre um instrumento limitado mas a lista – verificável – dos feitos e dos esforços é uma boa recompensa. Lá estão, preto no branco, as duras batalhas da sua vida com Bill, tema político «maior», mas apreciei especialmente a sua inteligente formulação da questão feminina – no pensamento e no exercício – colocada no contexto próprio, dos Direitos Humanos e o combate à pobreza e às desigualdades como instrumentos essenciais de justiça e pacificação das sociedades.

Aliás, o editorial do ‘New York Times’ – Hillary Clinton for President – publicado esta manhã, que faz um resumo preciso da sua história de competência, compromisso com os grandes valores humanos e serviço público, não lhes passa ao lado. Espero que Hillary ganhe: hoje à noite e, sobretudo, as eleições. Como diz a L’Oreal, depois de décadas a tentar entender o universo, porque ela merece. E porque provará, ao menos em parte, que o mundo ocidental não está, ainda, completamente enlouquecido com a estúpida regressão tribal de que se alimentam os totalitarismos paternais dos maníacos e dos escroques: todos nós o merecemos.

Entretanto, o Papa Francisco parece ter menos dúvidas do que eu quanto à forma diferente como as mulheres lideram e trabalham. Numa comunicação recente escreveu algo de raro, no mundo, e de único, na Igreja, e que lê bem o percurso excepcional de pessoas como Hillary Rodham Clinton mas não exclui as vocações firmes e discretas do anonimato: «as mulheres e as famílias que entendem, de forma muitas vezes mais adequada, os problemas das pessoas e sabem enfrentá-los de modo oportuno e por vezes inédito: cuidando da vida, com uma acrescida atenção centrada mais nas pessoas do que nas estruturas e fazendo valer todos os recursos humanos e espirituais para construir harmonia, relacionamento, paz, solidariedade, diálogo, cooperação e fraternidade, tanto no sector das relações interpessoais como na área mais ampla da vida social e cultural e, de modo particular, no cuidado dos pobres.»

Para estas duas pessoas lúcidas, inteligentes, sensatas e corajosas, ficam as palavras de António Lobo Antunes (na 'Visão', 2 de Junho passado), porque ambos merecem: «Como sou homem não tenho a delicadeza nem a capacidade de decifrar mistérios que as mulheres entendem sem palavras, encontram sem procurar, conhecem a linguagem do silêncio, relacionam-se com o por dentro das coisas, explicam-nos, com um bater de pálpebras, o segredo do mundo, conseguem deitar-se dentro da própria alma e adormecer acordadas.»

Nas batalhas de um e da outra, que ganhe a decência, por favor. Porque todos precisamos.

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  • António Costa
    27 set, 2016 Cacém 16:27
    Indira Ghandi e Golda Meir? É o que se chama "jogar forte" na politica internacional. Duas grandes mulheres com um M, muito, muito grande. Dois episódios em que participaram e que demonstram as suas personalidades fortes. Golda Meir era 1ª ministra de Israel, à beira da guerra. Era necessário adquirir aviões de combate e os EUA são e eram um aliado de que Israel necessitava para sobreviver. Mas os aviões americanos F-104 andavam com problemas e Golda Meir opta por adquirir aviões franceses Mirage, desagradando ao aliado americano. Israel vence a seguir a guerra dos 6 dias. Outro episódio mas com Indira Ghandi, 1ª ministra da India, um extenso e populoso país do sul da Ásia. Antes da sua morte Indira Ghandi lidava com problemas com a minoria Sikh. O Templo Dourado, de Amritsar, sagrado para os Sikh tinha sido atacado e ocupado pelo exército indiano. Os Sikh que defendiam o Templo sofreram muitas, muitas mortes. Mas, os guarda-costas de Indira Ghandi são Sikhs e esta é aconselhada a afastá-los. Indira Ghandi recusa, "antes de serem Sikhs, são Indianos" e não os demite. Indira Ghandi vai pagar com a sua vida a sua enorme coragem, pois vai ser assassinada por um guarda-costas Sikh.