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José Miguel Sardica
Opinião de José Miguel Sardica
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O acontecimento das nossas vidas?

29 jun, 2016 • Opinião de José Miguel Sardica


Os britânicos votaram e em democracia a vontade da maioria deve ser respeitada. E o que interessa é o dia seguinte – que neste caso serão semanas, meses e anos de um repensar de quase tudo na Europa.

A vitória do “Brexit” no referendo britânico da semana passada tem o efeito muito imediato de semear infinitas perguntas e de oferecer aos Europeus angustiados uma única certeza: a de que o seu mundo mudou a 23 de Junho de 2016. Podemos, claro, dizer que o triunfo da “saída” foi tangencial (51,9% contra 48,1%), que o debate na Grã-Bretanha não foi esclarecedor, que no fundo se tratou de um referendo sobre se a Inglaterra deveria receber mais refugiados ou restaurar fronteiras, contribuir para resgates de parceiros europeus falidos ou voltar a ter mais “leis próprias”, e que tudo se precipitou porque David Cameron queria encurralar o UKIP e calar Nigel Farage.

O facto é que os britânicos votaram e em democracia a vontade da maioria deve ser respeitada. E o que interessa é o dia seguinte – que neste caso serão semanas, meses e anos de um repensar de quase tudo na Europa. De facto, nada ficará como dantes, a não ser que um qualquer malabarismo político entre Londres e Bruxelas invente a repetição do referendo, para ver se o resultado é o mesmo ou não…

O “não” da Grã-Bretanha à pertença europeia tem efeitos mais ou menos previsíveis a curto-médio prazo: a nova liderança do Reino (des)Unido vai ter de lidar outra vez com a questão escocesa e norte-irlandesa, onde a vontade de ser europeu foi e é maioritária; e o precedente aberto pode levar a um efeito dominó, com outros países (a França, se Marine le Pen ganhar as presidenciais…!) a quererem fazer referendos semelhantes, ou a chantagearem Bruxelas com essa ameaça, se não houver concessões “à la carte”. Isto será tanto mais grave quanto se, a mais longo prazo, a relação entre a UE e a GB azedar de vez, numa lógica retaliatória da primeira e isolacionista ou proteccionista da segunda. Será o pior que poderá acontecer.

O menos mau no futuro é que o “Brexit” possa ser olhado e digerido como um brutal alerta à navegação. A UE precisa da Inglaterra, num mundo global que triangula cada vez mais entre os EUA, a China e a Rússia. Mas a Inglaterra também precisa da UE, e quererá com certeza ser, face à Europa que restar, uma super-Noruega ou uma super-Suíça, com as quais Bruxelas convive bem. E por isso o voto britânico terá de ser um despertador para que a Europa mude, mas mude mesmo, se não quer desintegrar-se, como agora ameaça acontecer.

O século XXI está demasiado complexo e perigoso para que se aceite como irreversível o bem-intencionado mas ingénuo “ever closer union” do Tratado de Roma de 1957. A estagnação económica, os problemas dos refugiados e do terrorismo, a cacofonia institucional da Europa, o cansaço dos povos, tudo convida à tentação soberanista e ao enfraquecimento do cosmopolitismo. Se a Europa não souber dar um passo atrás – como agora fizeram os britânicos – não poderá nunca mais dar passos em frente, que podem ser de colaboração e solidariedade, e que não devem ser, como ficou visto, de voluntarismo mais integrador.

Depois do “Brexit”, pode dizer-se que a Europa já não é o que era, ou o que nunca chegou a ser – porque não podem mesmo existir os “Estados Unidos da Europa”, a não ser como referencial simbólico. Entretanto, ninguém sabe o que ela vai ser. Uma aluna minha, recordando que há cem anos os nacionalismos europeus se combatiam uns aos outros na I Guerra Mundial, perguntava-me há dias se o “Brexit” poderá levar no futuro a uma III Guerra Mundial. Não sabemos. No ponto onde estamos, só podemos perceber que encetámos um caminho jamais trilhado – o da redução da Europa. Mas é verdade que o sucedido a 23 de junho de 2016 tem o estranho sabor (para o mal ou para o bem) do que nunca se pensou poder acontecer.

Comentários
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  • Eduardo Rocha
    02 jul, 2016 Lisboa 20:17
    O FUTURO da Europa e do Mundo segundo a Estratégia Problema, Reação, Solução: Problema: confronto entre PARTIDÁRIOS DA UE e os PARTIDÁRIOS DO REGRESSO AOS ESTADOS INDEPENDENTES, resultado daí cada vez mais caos político, económico e social. Reação: É preciso fazer alguma coisa, suficientemente eficaz, para acabar com o caos e repor a ordem. Solução: Criação de uma NOVA ORDEM MUNDIAL assente na criação de um ESTADO MUNDIAL DITATORIAL com: Constituição única, Parlamento único, Exército único, Moeda única…
  • António Costa
    29 jun, 2016 Cacém 19:54
    Só mais uma coisa....há cem anos na I Grande Guerra existiam "superalianças". Os impérios Inglês, Francês e Russo estavam aliados! Nessa época estes impérios "estendiam-se" da África à Ásia! Não eram "pequenos feudos" nacionalistas! Foi o emergir do "estado tampão" da Prússia que foi descarrilar tudo, ou "entornar o caldo". Foi uma guerra entre Superimpérios , que foi o principio do Fim do enorme poder que a Europa possui-a no mundo.O problema do "nacionalismo" da Sérvia apenas serviu de "detonador" do conflito. Hoje estamos a regressar à situação anterior às alianças que formaram as grandes Nações europeias! A separação iminente da Escócia e da Inglaterra é prova de isso. Estamos a "andar para trás" às vezes mais de 600 anos!
  • António Costa
    29 jun, 2016 Cacém 12:14
    Já chega de Magia, e árvores cujas folhas são moedas de ouro, só nas histórias do Pinóquio. Primeiro percebem-se e entendem-se os Problemas. As Soluções só deviam vir no Fim. Implementar soluções sem saber o que se quer. Sem saber o que se passa. Dá asneira, com a UE a "disparar" em todas as direções e o Reino Unido a fazer "eutanásia". O que é incrível é aqueles indivíduos acabaram com o Reino Unido e ainda não perceberam!