04 fev, 2016
No léxico interno do Governo, os parceiros de esquerda são os “primos” e as instituições europeias são os “tios”. Em matéria orçamental, os socialistas têm de entender-se com ambos, tios e primos. Têm de pedir licença aos tios para medidas que vão depois negociar com os primos e têm de jogar com os primos segundo as regras dos tios, regras essas que os primos acham que não devem ser cumpridas.
Mas ainda há mais nesta dinâmica familiar: não é possível jogar com os primos todos ao mesmo tempo, tem de ser com um de cada vez, há primos que não falam uns com os outros, desconfiam do jogo escondido, receiam as rasteiras e até há crises de ciúmes e amuos.
Os primos não são, pois, todos iguais; os primos comunistas têm um modelo de jogo diferente dos primos bloquistas. E podem fazer com que o jogo acabe antes do tempo regulamentar.
Se preciso fosse, as declarações de PCP e Bloco de Esquerda, esta quarta-feira, à saída das reuniões com o ministro das Finanças, mostraram bem como é diferente a atitude de bloquistas e comunistas face ao Governo PS e aos compromissos assinados em Novembro.
Para o Bloco o que importa é que nada ponha em causa o que consta do acordo assinado com os socialistas. Se há um aumento de impostos, mas não é em impostos sobre rendimentos do trabalho ou sobre bens essenciais, não há nenhum drama. O acordo é para ser cumprido e, desde que o seja, a governabilidade não é posta em causa.
Já para o PCP – que não assinou propriamente um acordo mas uma declaração de intenções - nada é garantido à partida, tudo é avaliado, medida a medida, momento a momento, em função do que entendem ser “políticas patrióticas e de esquerda”. E a táctica comunista vai ao ponto de esconder jogo e deixar os socialistas - que tanto são primos como adversários - nervosos. Foi o que aconteceu, por exemplo, na votação da reposição dos salários da função pública.
A medida foi aprovada segundo o acordo feito com o Bloco, que prevê reposição trimestral ao longo deste ano. Os comunistas queriam uma reposição total imediata e apresentaram um projecto nesse sentido, que foi chumbado, e não deram garantias que aprovavam o articulado bloco-socialista. Para aprovar a lei era necessário o voto favorável dos comunistas ou, em alternativa a abstenção do PCP e os votos favoráveis do PAN e dos Verdes. É assim neste Parlamento do tempo novo de António Costa.
Como o PAN e os Verdes não têm lugar em todas as comissões parlamentares, o PS teve de levar o projecto de lei a votação na especialidade em plenário para garantir que passava. Os comunistas acabaram por votar a favor.
Agora, imagine-se isto aplicado a uma boa parte das centenas de artigos que tem um Orçamento do Estado. O PCP a ter propostas alternativas na especialidade e a votação a ter de ser feita em plenário… E o PS e o Governo a não terem garantias sobre como vão os comunistas votar medidas de travão à despesa como o congelamento das carreiras da função pública.
Como dizia à Renascença esta semana uma fonte governamental, mais vale governar sem Orçamento do que com um Orçamento que não se controla.
Todo este processo orçamental já mostrou e vai continuar a mostrar como é frágil esta relação de primos. Não vai romper agora, não pode romper agora. Com mais ou menos avisos dos tios, com mais ou menos amuos dos primos, o Orçamento para 2016 será realidade. Mas António Costa, o grande negociador, não poderá respirar fundo.
Quase logo a seguir inicia-se outro processo orçamental, começa a fase decisiva do semestre europeu, em que cada país tem de definir os seus objectivos, prioridades e planos para o Orçamento do ano seguinte. E, depois, a comissão fará recomendações específicas para cada país que terão de ser vertidas nos respectivos orçamentos. Ou seja, o Orçamento de 2017 está já aí ao virar da esquina e os tios e os primos vão ser os mesmos, mas podem não ter as mesmas atitudes que se têm no início do jogo.