13 out, 2015
Há quatro anos, tal como escrevi nestas páginas, senti a realização das eleições legislativas como se uma chuva de primavera tivesse caído sobre o país, lavando os traços de sujidade que conspurcavam a arena política e as nuvens escuras que se abatiam sobre o debate político. Como a maioria dos portugueses, ainda não fazia ideia do que aí viria em termos de necessidades de higienização do Estado e da banca, mas uma temporada substancial do consulado de Sócrates ficou marcada pela irritação que provocavam nas mais altas instâncias as divergências de opinião política ou procedimental. Um pouco por toda a administração pública, e talvez por outras bandas, julgo que não foram poucos os que experimentaram na pele a desagradável impressão de estar a incomodar os mentores da verdade do momento e é possível que já não nos lembremos bem de algumas mordidelas esparsas, aqui e ali, nos menos crentes na bondade das decisões.
Durante os quatro anos do governo da coligação tive imensas ocasiões para discordar, mais ou menos indignadamente, da benignidade e da oportunidade de um sem-fim de medidas e, até, da orientação mais global das políticas do governo, frequentemente colidentes com os princípios da Doutrina Social da Igreja que me são caros. Mas quando agora votámos, sob uma intensa chuva outonal que, de resto, continua a alagar o país, não foi pensando em pântanos nem outras formas de conspurcação. Não esqueço os inúmeros episódios confusos, os monumentais danos colaterais e as dramáticas vidas irrecuperáveis, mas foi bom poder viver uma legislatura sem que a divergência implicasse a necessidade de olhar sobre o ombro.
Com esta nota não pretendo premiar nem consolar os membros da coligação, a braços com uma extraordinária vitória curta, difícil de conjugar com os mercados, a viabilização do crescimento económico e o derradeiro adeus ao sonoro vazio presidencial. Mas, como muitos portugueses, preciso de acreditar que António Costa é capaz de compreender que o Bem do País é o mesmo bem do Partido Socialista, embora com o risco de um certo desfasamento temporal. Sob esse ponto de vista, a Fonte Luminosa de Sousa Pinto recolocou o debate nacional no sítio certo. O país precisa de ser governado com honesta humildade no complexo marco das suas responsabilidades globais - da liçãozinha sabida de Cavaco não nos podemos queixar - para as quais as "podemizações" populistas da esquerda protesto e a nova maleabilidade do empedernido credo comunista são um risco identificado. Pode, pois, o Partido Socialista resistir a des-soarizar-se ao ponto de ignorar a dívida pela qual os portugueses perdoamos quase tudo ao seu fundador?
Fritz Oser, um discípulo de Karl Jaspers que se dedicou ao estudo do desenvolvimento moral, escreveu: “Uma das superstições científicas mais antigas é a noção de que a moralidade inibe a eficiência... mas a investigação sobre a gestão mostrou que o sucesso, de facto, depende do chamado 'sistema de valores' vivido. Eficiência e responsabilidade são complementares.” Espero que António Costa escolha o que é certo em detrimento da esperteza politiqueira. Essa também será a salvação do PS, mesmo que um outro líder venha a recolher os frutos. Mas se, para um dirigente, uma legislatura é um "vou ali e já volto", para um país fragilizado pode significar o regresso às cavernas da insolvência e outras coisas assim de giras e confortáveis.