13 jul, 2018
“Se quiser perceber ao que me refiro quando falo em arbitrariedade das categorias, veja o caso da polarização política. Da próxima vez que um marciano visitar a Terra tente explicar-lhe por que razão aqueles que concordam que se autorize a remoção de um feto do ventre da mãe também se opõem à pena de morte”. A citação é do livro “Cisne Negro” de Nassim Taleb e remete para uma das grandes incoerências do ar do tempo: como é que se pode ser pró-aborto e anti-pena de morte ao mesmo tempo? Como é que a vida pode ser absoluta e relativa ao mesmo tempo?
Seja qual for a natureza do crime, o leviatã não tem o direito de matar um cidadão capturado pelas forças policiais. Se há rendição ou captura, a força letal deixa de ser legítima. E o leviatã não pode recorrer à pena de morte por três razões. Em primeiro lugar, o estado de direito é a negação da vingança. Desde as cidades refúgio do Antigo Testamento (Nm 35, 9-34), o estado de direito tem sido o congelador do impulso natural da vingança de sangue. Esse impulso não pode ser erradicado, mas pode ser congelado ou adormecido. A pena de morte é o inverso desta domesticação dos nossos piores impulsos, é a legitimação do olho por olho, dente por dente do estado da natureza. Em segundo lugar, o estado pode errar na sentença; aquela pessoa pode estar de facto inocente. Em terceiro lugar, a pena de morte abole à partida a possibilidade de redenção. A redenção de um criminoso é, com certeza, um caminho difícil, mas não é impossível. São Paulo e Santo Agostinho eram criminosos ou impuros.
Pois bem. Se, com base nestas três razões, uma pessoa é contra a pena de morte de um indivíduo que matou ou violou mulheres, como é que depois essa mesmíssima pessoa fecha os olhos à morte por antecipação de um ser humano que nem sequer tem voz? Como é que um indivíduo é contra a morte de um criminoso e – em simultâneo – é a favor do descarte do ser humano mais frágil e inocente de todos, um ser humano a quem nem sequer é concedido o direito de nascer? Como é que se dá este salto lógico? Porque é que o valor da vida deixa de contar no aborto? Repare-se que os defensores da pena de morte ainda podem argumentar (sem razão, diga-se) que a morte é o único castigo à altura do crime hediondo praticado pelo réu. Mas qual é a acção hedionda do bebé por nascer? É esta a brutal incoerência dos defensores do aborto. É tal arbitrariedade de que fala Taleb. Não há aqui uma coerência lógica ou moral dos argumentos, há apenas a vontade política de um sector da sociedade que decreta uma “moralidade” à la carte.
Este raciocínio também se aplica ao contrário. As pessoas que por norma são contra o aborto são paradoxalmente as pessoas que mais apoiam a pena de morte – e aqui estamos numa realidade que é sobretudo dos EUA e da chamada cintura bíblica sulista. Como é que uma pessoa que se diz cristã pode ser contra o aborto de manhã e ser a favor da pena de morte à tarde? Não há nada mais anti-cristão do que aceitar como legítima a morte de uma pessoa às mãos da coerção legal do leviatã ou moloch. Da mesma forma, não se pode ser ao mesmo tempo pró-vida e pró-armas. Um cristão não pode ser pró-vida e pró-armas da mesma forma que não pode ser nacionalista e cristão. Esta posição, bastante comum nos EUA, é uma contradição lógica e uma violação da moral ancorada no evangelho. As pessoas até têm o direito de defender a cultura das armas, mas já não têm o direito de fazer essa defesa enquanto cristãs.