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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Opinião de Henrique Raposo

​Eternidade

06 jul, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


Não se chega à eternidade com um escadote, pirâmide ou torre de babel. A eternidade não está no espaço. E também não está no tempo, não é uma variável cronológica.

Como é que se filma ou descreve a eternidade? Nós somos seres espaciais e temporais. Pensamos através de referências nos situam no espaço e no tempo. Sem a latitude espacial e a longitude temporal, sentimo-nos perdidos. Então como é que podemos pensar ou descrever a eternidade, que é por definição aquilo que existe para lá do espaço e do tempo?

Não se chega à eternidade com um escadote, pirâmide ou torre de babel. A eternidade não está no espaço. E também não está no tempo, não é uma variável cronológica. A eternidade não é aquela porção interminável de tempo que existe depois da morte; não é muito tempo, está para lá do tempo. Tendo em conta esta incapacidade conceptual, linguística e até neurológica para descrevermos a eternidade, como é que podemos filmá-la ou descrevê-la? Terrence Malick em “A Árvore da Vida” fica perto dessa proeza moral e estética.

Não sei se Malick é católico, mas o seu trabalho está submerso na visão católica do mundo. Os seus filmes mostram os pontos de intersecção entre a eternidade e a história humana. Para conseguir esta dimensão poética e quase profética, Malick arrisca na forma como abandona a narrativa convencional. É um risco e, sim, acaba por cometer erros. A crítica que Christopher Plummer lhe deixou tem o seu sentido: “Malick escreve até ao ponto em que aquilo soa terrivelmente pretensioso e depois edita e corta todos as cenas dos actores, o filme fica envolvido em planos poéticos, que são maravilhosos, é verdade. Mas são pinturas. Ficam ali perdidos e a história acaba por desaparecer”. Senti este pretensiosismo desgarrado noutros filmes de Malick, sobretudo “Novo Mundo” (que conta com Plummer).


E é verdade que a cultura pós-narrativa do pós-modernismo criou vício atrás de vício, fraude atrás de fraude, objectos pedantes atrás de objectos pedantes. Só que "A Árvore da Vida" é outra loiça. A descontinuidade narrativa não é aqui um pretensioso jogo da estética pela estética, não é um experimentalismo oco, não é uma vaidade godardina que recusa a narrativa num acto quase ideológico.

A linguagem poética e elíptica é a forma que Malick encontrou para filmar Deus. A cena da praia é, a meu ver, a melhor representação de Deus alguma vez filmada. Para ter esta força explosiva, a cena não podia aterrar nos nossos olhos da maneira convencional. Tinha de chegar assim: em versos visuais, em imagens elípticas que comunicam connosco através da linguagem iconográfica dos sonhos – algo que já discuti nesta coluna a partir da obra de Cormac McCarthy. Malick demorou três anos a montar/editar este filme. Três anos. Ou seja, ele escreve com imagens e sons da mesma forma que McCarthy escreve com palavras.

Por norma, associamos o cinema à ideia de romance. Com Malick, temos de encostar o cinema à ideia de sinfonia, uma sinfonia de imagens e luz em guerra ou em paz com o som e a música - sonhos e pesadelos.

Sem adiantar muito sobre a história, digo apenas que “Árvore da Vida” segue a linha clássica: inferno, purgatório e paraíso. E é absolutamente notável verificar que este objecto tão tradicional é ao mesmo tempo revolucionário e original. Não exagero quando digo que Malick está para o cinema como Dante, Milton ou Eliot estão para a literatura. Os seus filmes mostram-nos um mundo onde a acção de Deus é visível mesmo nas situações mais dolorosas. Não estamos sozinhos mesmo quando nos confrontamos com o horror da guerra (“Barreira Invisível”) ou com esse horror maior que é perder um filho (“Árvore da Vida”).

Comentários
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  • Maria Teresa R A
    28 out, 2018 Lisboa 12:22
    Que bom haver alguém que ponha ordem e sentido no meu pensamento por vezes tão difuso, instintivo e desorganizado. Obrigada
  • Roca
    12 ago, 2018 liboa 11:07
    A eternidade não existe realmente em termos individuais mas sim em conceitos universais porventura.
  • Vera
    07 jul, 2018 Palmela 17:24
    Se olharmos a linha do Horizonte, sabemos que ela está longe, mas como chegar perto? porque essa linha não está no começo nem no fim, parece-nos! mas ela está no infinito! Fernão de Magalhães andou 3 anos no mar e a única conclusão que tirou, foi de que a terra era redonda! Nem por mar, nem pelo ar, nem subindo montanhas! Moisés, tentou, subiu ao Monte Sinai, pensou naquilo que Deus lhe queria dizer, porque era o que estava certo e ao mesmo tempo, um trovão fez-se sentir por todo o deserto, era a voz de Deus! daí vieram escritos os Dez Mandamentos, que foram entrando na cabeça de Moisés, ao som dos trovões, foram 40 dias que Moisés conversou com Deus! Então nasceu Jesus, fascinado pela escrita de Abraão e de Moisés, seguiu os ensinamentos e aprendeu a falar com Deus, mas Este, conseguiu a força, que pedia a Deus para curar doentes e mendigos. A força! essa força, vem quando pedimos a Deus, não para nós, mas sim para fazer bem aos outros... Então no meu ver, se o mal não existisse (sofrimento, inveja, gente má...) nunca chegávamos a Deus! se fosse 'a Wonderful Life´, quem iria pensar em Deus e em conservar a Natureza, as espécies animais e a humanidade? ninguém!!! Há quem se interrogue: se Deus existe, por que deixou o mal entre os homens? Deve ser, porque a Natureza não foi feita só a pensar nos humanos! imagino que seja esta a resposta, que Deus tem para nos dar... Tudo na Natureza tem a força de Deus, todos os seres vivos, vivem e pensam. Jesus, mostrou e deixou para nós.
  • Carol
    06 jul, 2018 Brasil 22:13
    Terrence Malick não é católico, mas certamente é cristão. Se não estou enganada, protestante; mais precisamente, anglicano episcopal.