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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

Autonomia e individualismo

16 jun, 2018 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


O individualismo que ignora a dimensão coletiva da pessoa e o relativismo pós-moderno levam ao apreço pelos regimes autoritários, escassamente democráticos.

A autonomia pessoal foi uma conquista da modernidade. Antes, as pessoas eram obrigadas pela pressão social e política a pensarem e agirem de acordo com os padrões estabelecidos. Havia exceções, claro; mas esta era a norma geral. A reforma protestante não trouxe a liberdade religiosa; pelo contrário, os católicos e as várias confissões em que se dividiram os protestantes tinham de seguir a religião do rei ou de quem mandava politicamente no território onde viviam. Daí as trágicas guerras de religião que se seguiram.

Os EUA deram um impulso decisivo para a liberdade religiosa, permitindo a convivência pacífica entre as várias crenças daqueles que, na sua maioria, fugiam da Europa para escaparem às perseguições religiosas. No nosso tempo, felizmente quase todas as igrejas cristãs admitem o pluralismo religioso. Mas já o Islão não distingue, na maior parte dos casos, “o que é de Deus e o que é de César”. A religião e a política estão intimamente ligadas nas teocracias islâmicas.

Mas a autonomia pessoal tem limites, como tudo na vida. Ninguém pode reivindicar a sua autonomia para prejudicar terceiros. E a liberdade não é meramente negativa, no sentido de ser apenas uma barreira à intromissão do Estado e de outras pessoas na minha esfera de ação e pensamento. Um liberal como Hayek, defensor acérrimo da liberdade individual e do mercado, dizia não compreender a satisfação das populações de países descolonizados, pois sem o colonizador iriam passar pior. De facto, numerosas dessas independências poucos ou nenhuns benefícios materiais trouxeram às populações, pelo menos nos primeiros anos. Mas tornar-se independente satisfazia-lhes o ego coletivo.

Dimensão coletiva da pessoa

O problema, aqui, está no individualismo, que ignora a dimensão coletiva da pessoa. Cada um de nós é, em parte, constituído pelo meio em que nascemos e vivemos, pela cultura em que estamos integrados. Não podemos deixar que essa cultura nos impeça de pensar e agir livremente, pondo em causa a liberdade de consciência, mas seria uma ilusão ignorar a nossa dimensão coletiva.

Ora o crescente relativismo das sociedades mais ricas tem muito a ver com um individualismo extremo. As referências externas perdem-se. É notória a quebra de autoridade das instituições políticas, religiosas e familiares. A própria ciência, que no passado tantas vezes foi utilizada para atacar a religião, perdeu autoridade – veja-se, por exemplo, a recusa às vacinas por parte de pessoas que não são analfabetas. A verdade, como ideal a tentar atingir, perdeu valor no mundo pós-moderno. E razão, que o iluminismo exaltava, porventura com algum exagero, é afastada do debate público.

Repare-se nos fiéis seguidores de Trump, impermeáveis a argumentos racionais ou, até, à simples evidência dos factos. A noção de verdade perde sentido nessa situação. Muitos preferem o que sabem ser falso, mas lhes agrada ouvir, à verdade que os incomodaria. É o terreno ideal para as “fake news”.

Sociedades plurais

Vivemos em sociedades pluralistas, onde convivem em paz pessoas com diferentes conceções éticas. Mas não é possível a vida social sem um “mínimo ético”, decerto não unânime, mas representando um consenso alargado. Um consenso não meramente de procedimentos, instrumental, mas substantivo, na formação do qual todos os cidadãos são convidados a livremente participarem. Só com base num tal consenso podem os Estados legislar com legitimidade em matérias delicadas.

A erosão desse consenso pelo individualismo radical que se instaura gradualmente levará cada vez mais gente a apreciar os chamados Estados autoritários, desprezando a democracia liberal e o que esta tem de mais valioso como promotora da liberdade pessoal. Repare-se como a extrema-direita gosta de Putin (é o caso, nomeadamente, de Marine Le Pen e do italiano Salvini, na prática um fascista, atual líder da Liga). Ou, noutro quadrante, na atração que o extremismo islâmico exerce sobre jovens nados e criados em democracias liberais. Ou, ainda, no fraco interesse pela liberdade cívica e política que os chineses ricos manifestam, aplaudindo um sistema de vigilância estadual permanente sobre todos os cidadãos. Vigilância que as novas tecnologias facilitam.

Por outro lado, o individualismo radical como reação conduz, paradoxalmente, a gregarismos pouco saudáveis. O homem é um animal social; se essa dimensão é descartada, ela regressa da pior maneira. Faz lembrar um dito francês que ficou célebre no séc. XVIII: “chassez le naturel, il revient au galop”, que podíamos traduzir por “se o natural é expulso pela porta, ele volta pela janela”. O confronto quotidiano com outras culturas conduz o individualismo mal digerido ao populismo identitário. Países como a Polónia ou a Hungria, que praticamente não recebem refugiados ou imigrantes, assumem uma xenofobia agressiva para – dizem – manterem a sua identidade.

Agora é a Itália que se fecha aos imigrantes. Tem a desculpa de não ter beneficiado da solidariedade dos seus parceiros europeus no encaminhamento dos refugiados para outros países. Estamos perante o individualismo egoísta europeu numa das suas mais negras manifestações. Valeu a Espanha: salvou a honra do convento. Sem, porém, resolver o problema.

Comentários
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  • António Costa
    16 jun, 2018 Cacém 12:16
    Há Mar e Mar, ir e voltar. Há Ler e Ler. Repetir o que se leu ou perceber o que se leu. Um Homem chamado Richard Feynman, Prémio Nobel da Física ficava escandalizado os alunos. Tinham entrado na Universidade com notas elevadas, conheciam de cor todas as regras e princípios da Física, mas…..perante casos concretos não conseguiam fazer o caminho "inverso" e "descobrir" os princípios que se escondem por detrás da "realidade". Durante milhares de anos o Homem foi ensinado a repetir Regras. Regras que podem ser ouvidas ou lidas…..repetir o que não se entende é muito cómodo.