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Francisco Sarsfield Cabral
Opinião de Francisco Sarsfield Cabral
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Tentar perceber

Ética e corrupção

19 mai, 2018 • Opinião de Francisco Sarsfield Cabral


A ética tem que estar presente em praticamente tudo o que envolva corrupção. E a Doutrina Social da Igreja dá contributos valiosos para o combate pela moralização económica e financeira.

Há dias, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou um documento sobre produtos financeiros. Há quem se interrogue: o que tem a ver a Igreja Católica com as questões financeiras? Pois não insiste a Igreja, a vários níveis, que não lhe cabe apresentar soluções políticas ou técnicas?

A Igreja pode e deve analisar os problemas sociais, económicos e financeiros do mundo atual numa perspetiva ética. A Doutrina Social da Igreja (DSI) é teologia moral. Mas dirige-se a todos, crentes e não crentes. Naturalmente que aos católicos cabe a responsabilidade de prestar atenção ao que diz a DSI; já os não crentes, se quiserem, encontram ali inspiração para trabalhar no sentido de um mundo mais humano.

Deve dizer-se que muitos católicos ignoram, mais ou menos deliberadamente, a DSI. Encaram-na como um conjunto de votos piedosos, sem grande ligação às duras realidades da vida financeira e económica. Por exemplo, houve quem se escandalizasse com afirmações do Papa Francisco, que afinal mais não eram do que conselhos da DSI – ditos de forma direta e frontal, como é habitual neste Papa.

Por outro lado, historicamente a DSI surgiu tarde. A primeira – e excelente - encíclica social, a “Rerum Novarum”, de Leão XIII, é de 1891. Nessa altura a revolução industrial já levava um século no Reino Unido. O que afastou do cristianismo grande parte dos operários, vítimas de grande exploração e de terríveis condições de trabalho ao longo do séc. XIX.

DSI pioneira

Nas últimas décadas, porém, a situação inverteu-se, pois documentos que, desde o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica tem publicado na área económica, financeira e política podem considerar-se pioneiros na denúncia de situações eticamente inaceitáveis e no apontar de pistas de solução. Um exemplo: a constituição pastoral do Vaticano II “Gadium et Spes” recordou “o valor permanente do direito internacional e dos seus princípios universais”. E exigiu instituir “uma autoridade pública universal, reconhecida por todos, com poder eficaz para garantir a segurança, a observância da justiça e o respeito dos direitos”.

No centenário da “Rerum Novarum”, em 1991, João Paulo II escreveu na encíclica “Centesimus Annus”: “Hoje está-se a verificar a denominada ‘mundialização da economia’, fenómeno este que não deve ser desprezado, porque pode criar ocasiões extraordinárias de maior bem-estar. Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que, a esta crescente internacionalização da economia, correspondam válidos organismos internacionais de controlo e orientação, que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer”.

Nas mensagens para do Dia Mundial da Paz (1 de janeiro), iniciadas por Paulo VI em 1967, foi repetido por sucessivos Papas o apelo a enquadrar politicamente globalização. Por exemplo, na mensagem do início do ano 2000 João Paulo II alertava: “Sem mais adiamentos, é necessária uma renovação do direito internacional e das instituições internacionais, que tenha o ponto de partida e critério fundamental de estruturação no primado do bem da humanidade e da pessoa humana sobre qualquer outra coisa.” Isto era dito numa altura em que, nos EUA, a administração de Bush filho e os neoconservadores que o rodeavam preconizavam – e praticavam – exatamente o contrário.

E no “Compêndio de DSI”, n.º 371, lê-se: “Também a política, a par da economia, deve saber estender o próprio raio de ação para além dos conflitos nacionais, adquirindo rapidamente aquela dimensão operativa mundial que lhe pode consentir orientar os processos em curso à luz de parâmetros não só económicos mas também morais”.

Combate à corrupção

As questões éticas não se colocam apenas no plano da política internacional e nacional. Antes de mais, elas colocam-se a toda a gente em geral, nas decisões pessoais de cada um, com especial relevância naqueles que dispõem de poder. Qualquer poder: económico, familiar, cultural, social, político, etc. Essas pessoas são por vezes tentadas a exercer esse seu poder em proveito próprio e dos seus amigos, e não a favor de quem deveriam proteger.

Voltamos, assim, à corrupção – que tem infelizmente dominado a atualidade portuguesa nos últimos tempos. É grande a importância da ética quanto aos meios para combater esse cancro. Diz-se, e é verdade, que travar a corrupção exige mais meios humanos e técnicos na justiça e nas polícias. Os chamados crimes “de colarinho branco” são quase sempre muito difíceis de investigar e julgar por quem não possua conhecimentos técnicos na matéria. E usar nesse combate certos meios é algo que apenas deve ser feito depois de uma aprofundada ponderação moral.

É o caso, nomeadamente, da “delação premiada”, um instrumento judicial usado no Brasil (mas não em Portugal) que foi decisivo para a “operação lava jato”, que descobriu uma monumental rede de corrupção, envolvendo políticos e grande empresários. Trata-se de oferecer a um acusado uma pena relativamente leve, caso ele confesse e contribua para o processo com informações sobre corrupção. Até que ponto é eticamente aceitável a delação premiada? Instintivamente, diria que ela é inaceitável. Mas admito que, com sérias restrições e limites, a prática pudesse ser adotada entre nós. Tudo depende de uma avaliação ética dos prós e contras.

Repugnam menos aqueles que, dentro de uma empresa ou um serviço público, alertam as autoridades para casos que ali se passam e que trazem danos para a sociedade – fuga aos impostos, por exemplo. A Comissão Europeia quer proteger estes “whistblowers” (alertadores). E o “Diário de Notícias” de quinta-feira publicou um artigo de Luís Villalobos com o título “Os ‘chibos’ fazem bem à economia”.

Outro caso que merece debate ético é o enriquecimento injustificado. Não se pode, juridicamente, estabelecer a inversão do ónus da prova, isto é, forçar quem é manifestamente rico, tendo sido pobre, a provar que enriqueceu por meios legítimos – quem acusa é que tem que provar a acusação, o que por vezes é muito difícil. Mas importa proceder a uma avaliação moral da via através da qual, se alguma existir, uma pessoa possa ser obrigada a dar explicações sobre escandalosos sinais exteriores de riqueza.

Numa palavra, a ética tem que estar presente em praticamente tudo o que envolva corrupção.

Comentários
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  • Luiz Leitão
    21 mai, 2018 13:41
    Sem capacidades académicas para entrar em polémica, nem desenvolver sozinho o que considero o único meio para reduzir a desigualdade social, aponto: Nova ordem comercial: comércio em rede (negócio online), onde todos seremos clientes/empresários, (com fins lucrativos).