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O "lado B" da violência doméstica - o que a vergonha não mostra

09 mai, 2018 • Liliana Carona


O número de casos de violência doméstica contra homens tem aumentado. Em Portugal, há apenas três locais focados para o acolhimento deste tipo de vítimas, em Faro, Viseu e Coimbra.

Os números podem ser mais elevados, acreditam as entidades responsáveis. Por vergonha, por receio de humilhação, há muitos homens que escondem entre quatro paredes cenários de violência física e sobretudo psicológica.

Os números de violência doméstica contra homens têm aumentado. Entre 2013 e 2015, registou-se um crescimento de 15% queixas de homens vítimas de violência doméstica, de acordo com as estatísticas da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). Os crimes contra homens correspondem a 15,7% do total nacional. Entre 187.781 vítimas deste tipo de crime, 29.545 são homens

Em Portugal, existe apenas uma casa-abrigo permanente destinada a homens vítimas de violência doméstica, localizada em Faro. Há também duas instituições religiosas que servem de centro de acolhimento temporário a vítimas masculinas: a Casa-Abrigo Padre Américo, em Coimbra, e a Cáritas Paroquial de Santa Maria, em Viseu, que diz ter sido a primeira casa - desde 2000 - a acolher homens vítimas de violência doméstica.

Na Cáritas Paroquial de Santa Maria, há sete quartos e capacidade para acolher catorze homens ou mulheres. Ana Paula, uma das funcionárias, cuida da imagem dos homens que chegam sem autoestima, sem vontade de viver. “Dou um jeitinho na imagem deles, desfaço a barba, ponho creme... Eles vêm tão carentes... Tentamos dar apoio. Às vezes, querem conversar, queixar-se e a gente vai ouvindo”, diz.

"Tesouras e facas debaixo do travesseiro"

Em Viseu, não existe delegação da APAV, mas há o NAVVD - Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica, sedeado no edifício da Segurança Social.

“Um homem o que pretende, senão a companhia do ser mulher? E eu assim pretendia, conheci uma menina, fiz tudo legal, casamento por igreja e civil”, recorda João Nascimento, que há dois anos viu a sua vida virada do avesso.

“Ela chegou a dormir com objetos debaixo da cama. 'Esta faca vai dormir comigo', dizia ela. Eu estava à vontade, não fazia mal, mas, quando chegou a noite e ela com uma faca na mão... Estive em alto risco de ser assassinado. Foi violência de todo o género, psicológica, física, de tudo mesmo”, conta.

Foi há dois anos que João Nascimento, hoje com 50 anos, ligou para o número do NAVVD. “Telefonei para a Segurança Social, como eu já vinha a sentir necessidade de procurar ajuda, apanhei o número na televisão”, recorda.

João foi encaminhado para o primeiro centro de acolhimento de vítimas homens a surgir no país, localizado na Cáritas Paroquial de Santa Maria em Viseu. “Acabaram por me dizer para ir para a Cáritas, pois as coisas começaram a não correr bem com a minha esposa, existiam tesouras e facas debaixo do travesseiro, chamava-me nomes... Ela não era de acordo com nada. Ela já não via em mim o companheiro e a pessoa amada. Toda a palavra que ela dizia, era sempre zangada e áspera”, lamenta.

O estigma da vergonha e humilhação leva a que muitos optem pelo silêncio. João Nascimento hesitou, mas a dor tornou-se insuportável. “Eu ficava a interrogar-me. Eu, amando a pessoa, não queria provocá-la. Torcia-me todo, procurava as melhores palavras, mas, depois, começaram a acontecer fortes violências. Chamei a polícia, tudo se acalmava, mas só na hora”, relata sobre os dois anos em que esteve casado.

Acabou por decidir pedir ajuda, mas admite que “o homem não se quer mostrar que está em baixo, que ficou vencido pela mulher”.

Dois anos depois de ter saído de casa, João já tem emprego, mas ainda depende do refeitório social da Cáritas de Santa Maria. No entanto, o mais importante é sentir-se livre do pesadelo que vivia. Hoje, regressa ao quarto da Cáritas de Santa Maria, onde encontrou paz: “Ao início, estava aqui com outro jovem. Entrei no dia 31 de maio de 2016 e saí a 1 de Julho desse mesmo ano. Recordo essa fase como um abre olhos. Este ponto serve para nos auxiliar, mas depois queremos continuar o nosso dia."

João Nascimento garante que o amor do passado ficou lá atrás. “Não me apego mais à primeira vista por ninguém, mais vale só do que mal acompanhado”, sorri.

Trabalho escravo

Quando se fala dos agressores, deve sublinhar-se que podem ser mulheres, mas também homens. Há 10 anos que Álvaro Oliveira, de 74 anos, sem retaguarda familiar, foi acolhido como vítima de violência doméstica. Pastor, dependia de um patrão para ter uma espécie de lugar para dormir e, durante 30 anos, foi escravo. Não recebeu um tostão.

“O meu patrão não me pagava. Tanto me chateou... Era maltratado, passei por cada martírio com ele... A roupa molhada enxugava no corpo, sentia-me triste”, diz o pastor, garantindo ter boa memória. Acrescenta que está sozinho no mundo: “Tenho família que não vale nada, ninguém me vem visitar."

De forma temporária, a Cáritas Paroquial de Santa Maria acolhe homens vítimas de violência doméstica, mas há casos, em que, por falta de resposta, as situações arrastam-se. “Este senhor foi muito violentado. Está connosco, esquecido pela Segurança Social, pela comunidade, não tem família, nunca casou, não tem filhos, está sozinho no mundo. Ele não quer ir para um lar”, descreve Cristina Fonseca, assistente social.

O abandono de Álvaro, por parte da família, é confirmado por Cristina: “Ele foi encontrado a viver em situações muito precárias por um técnico de Segurança Social e ficou esquecido, até hoje."

Cristina Fonseca sonha ampliar o edifício e ter mais que do que sete quartos para receber as vítimas masculinas: “Sentimo-nos impotentes, porque podíamos dar resposta a mais pessoas, há vitimas que vão para pensões e ficam vulneráveis, pois são facilmente encontradas por agressoras e agressores.”

“Recebemos pessoas de Lamego e Resende, mas, às vezes, têm que ir para Faro, ficam longe da família. Pelo menos dois casos já tiveram de ir para lá. Isto é discriminatório, temos que olhar para esta realidade. A evidência é mais para as mulheres, porque as percentagens são maiores, mas, se não fizermos campanha para os homens, cada vez aumenta mais. Já vi um senhor com as costas todas marcadas de vergões de pau, todo marcado, e perguntei-me como é que este homem se submeteu a isto, mas acontece”, alerta a responsável da Cáritas Paroquial de Santa Maria, instituição fundada em 1996.

“Violência doméstica é violência doméstica, não tem que ser homem ou mulher. Fale de si, não tenha vergonha. Homem ou mulher, somos vidas”, apela Cristina Fonseca,

Menos violência física, mais manipulação

No edifício da Segurança Social, está Ana Balula, técnica de serviço social, do Núcleo de Atendimento às Vítimas de Violência Doméstica (NAVVD), do distrito de Viseu, organismo criado em Outubro de 2006, no âmbito da política de prevenção e combate à violência doméstica do XVII Governo. Esta é a única resposta que existe no distrito para as vítimas de violência doméstica, sejam homens ou mulheres.

“Das 177 pessoas que atendemos no ano passado, 8% eram homens. Em 2016, foram apenas 3%. Tem vindo a crescer, os homens começam a procurar ajuda, porque existem muitos casos encobertos, há muitos com vergonha, pensam no que os colegas e família vão dizer e remetem-se ao silêncio”, observa.

Na tentativa de definir o perfil do homem vítima de violência doméstica, Ana Balula diz que se trata de pessoas "com formação superior ou 4.ª classe, sem estatuto definido, frágeis, que têm passado com perdas a nível pessoal ou complicações na infância, mantendo sempre a esperança de que as coisas mudarão". Em relação ás mulheres, "pode não haver tanta violência física, mas há psicológica, mais manipulação”.

O NAVVD tem procurado ir às escolas com campanhas direcionadas para a violência no masculino, que começa no namoro. “Utilizamos personagens da Disney. Uma delas questiona: 'quando é que ela o deixou de tratar como herói?'”, aponta o dedo para um dos cartazes espalhados pelo gabinete.

Ana Balula, defende que os conselhos a dar aos homens são os mesmos que se dá às mulheres: “Ter atenção ao ciúme doentio, patológico, àquela obsessão, aquelas ameaças, tipo 'vou-me matar se me deixares'. Isto complica a vida de uma pessoa, tanto os homens como as mulheres devem estar atentos ao caráter manipulador. Os jovens acham que é muito normal a namorada ter a palavre-passe do Facebook ou Instagram, e ninguém deve ter acesso aisso, são questões particulares."

Também o (NIAVE) Núcleo de Investigação e de Apoio a Vitimas Específicas da GNR procura sensibilizar a população para a temática da violência doméstica contra homens.

O tenente-coronel Silva Dias, oficial de relações públicas do comando territorial da GNR de Viseu, lamenta aquilo que diz ser censura social. “Aqui, no distrito, temos violência doméstica contra homens, mas a maioria não é denunciada, porque existe estigma e censura social. O homem tem que ser forte, não pode dar a parte fraca e isso reflete-se nos dados estatísticos”, anota.

No comando territorial da GNR , há registo de uma percentagem considerável de casos de vítimas masculinas. “Percentualmente, é um número considerável. O número de queixas em que os homens são vítimas corresponde a 18% do total de queixas, entre 2011 e 2017. Aqui em Viseu, o mais novo tem 14 anos e o agressor era o pai. O senhor mais idoso tem 88 anos e o agressor foi o filho”, revela Silva Dias.

“Violência doméstica é violência doméstica, não tem que ser homem ou mulher. Fale de si, não tenha vergonha. Homem ou mulher, somos vidas”, apela Cristina Fonseca, responsável da Cáritas de Viseu.

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