27 abr, 2018
Djaimilia Pereira de Almeida interessa-me por duas razões. Em primeiro lugar, ela pisa terrenos mulatos, os terrenos do conflito entre duas identidades, a tragédia da dupla pertença; sou um “mulato” com aspas, mas não deixo de ser mulato. Em segundo lugar, é muito interessante sentir a tensão entre Deus e esta jovem escritora. Nos livros de Djaimilia Pereira de Almeida, Deus é uma entidade fugidia, ou melhor, é Djaimilia quem foge de Deus, é ela quem se esconde de Deus quando fica perto do desespero, daquele genuíno desespero que abre os caboucos da fé. Senti isso agora em “Ajudar a Cair”, reportagem da Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre o Centro Nuno Belmar da Costa (Oeiras), instituição que acolhe doentes com paralisia cerebral. Ao descrever a fragilidade física e psíquica destes doentes que dependem em absoluto de terceiros, a autora confronta-se com a sua própria fragilidade. E é precisamente nestes momentos de fraqueza que Djaimilia foge para um certo experimentalismo formal que a protege do confronto final com Deus. Isto não é uma crítica. É uma constatação de algo que me é familiar: durante anos e anos, fiz tudo para não me confrontar com Deus; durante uma larga temporada, que hoje me envergonha, pensei e escrevi com conceitos (ex: direito natural) que serviram apenas para adiar o confronto olhos nos olhos com o Senhor.
Já tinha sentido esta tensão no livro “Esse Cabelo”, um relato da identidade ou da memória mulata de Djaimilia, autora perdida ou amputada entre os subúrbios de Lisboa e as memórias de uma África que nunca foi sua. Nesse livro, a avó Lúcia e a mãe da autora fazem-me lembrar a minha Maria, a primeira mulher a inocular-me com a ideia de Deus. Lutei durante décadas com a frase que Maria repetia como uma novena, “há qualquer coisa lá em cima, filho”. No cemitério, na campa dos meus avós, ela rezava, ou melhor, entregava-se à reza de uma forma que faz lembrar a mãe de “Esse Cabelo”:
“A forma da oração não a detinha, como acontece aos que não sabem rezar (...) Hoje oiço-a orar maravilhada e sinto-me grata por perceber nela o dom de alguns solitários de descansarem de si mesmos, a que nunca me consegui entregar”.
Ainda hoje é difícil suspender esta recusa de me entregar. Ainda hoje penso que a fé ingénua de Maria é superior à minha fé porventura demasiado intelectualizada. Ainda hoje, quando rezo, sinto que vejo o mundo com duas câmaras, dois pontos de vista: o ponto de vista dos meus olhos de crente que se entrega; o ponto de vista de uma câmara exterior que está por cima do meu ombro ou da minha cabeça, uma câmara que me vê do exterior num plano picado. Ou seja, vejo-me sempre de fora, numa perspectiva exterior e demasiado auto-consciente e, por inerência, demasiado racional ou mesmo cínica; este segundo ponto de vista conspurca a sinceridade do primeiro. É o pesadelo pós-moderno: não conseguimos estar na acção, temos de ver a nossa acção a partir do exterior, contextualizando-o com notas de rodapé, piscadelas de olho, jogos de referência. Este vórtice perpétuo de citação atrás de citação mata à nascença qualquer crença ou acção. Não fazemos nada, só reflectimos, só citamos. Não se pode filmar com a pureza seca de Michael Mann, é preciso filmar com a permanente jogo de citações de Tarantino. Por vezes, mesmo depois de um combate que já leva uma década ou mais, não me sinto como o homem que tem fé e que vive de acordo com essa fé; sinto-me o homem que acha que deve ter fé. Há um botão que ainda não aprendi a desligar - até porque ainda não o encontrei. E, do meu ponto de vista, é claro que Djaimilia Pereira de Almeida sente a mesma tensão ou dilema, até porque esta distância em relação a Deus é um espelho da distância em relação à mãe. A sua relação com Deus é uma relação amputada, porque a sua relação com a mãe teve demasiados anos “amputados”.
Esta tensão dá aos livros de Djaimilia um pulsar que é visceral e racional ao mesmo tempo, emotivo e distante, descrente e crente. Por vezes, ela escreve como alguém que se separou de Deus. No entanto, se avançarmos umas páginas, descobrimos uma reflexão de um crente que leu e percebeu Job e Eclesiastes: “Costuma dizer-se que tudo tem um significado, mas tal é uma forma do pavor humano de conviver com a injustiça (...) a redenção não reside por isso em encontrarmos sentido em tudo, mas na possibilidade de surpreendermos a graça no que é arbitrário”. Sim, há desespero em “Ajudar a Cair” e “Esse Cabelo”, mas também há a certeza de que “o nosso quinhão de graça” está sempre à espera de ser colhido. Só temos de ter a coragem de esticar o braço, esteja ele amputado ou não.