10 abr, 2018
D. José Policarpo costumava dizer que se na diocese de Lisboa todos os católicos que vão à missa ao domingo fossem bons condutores, isto é, que guiassem segundo as regras de trânsito e o espírito cristão de respeito pela pessoa, o trânsito na cidade melhoraria substancialmente. Sem recurso ao Código das Estradas, aliás, a nenhum Código, é isso que o Para Francisco nos vem propor com a sua mais recente Exortação paternal, «Alegrai-vos e exultai», sobre aquilo que podemos ser: os santos de ao pé da porta, condutores da vida inspirados pela vivência verdadeira e sincera do domingo, que caminham a contracorrente – guiando bem, para variar! – «a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam… perseguidas simplesmente por ter lutado pela justiça, ter vivido os seus compromissos com Deus e com os outros».
Sendo um texto bastante mais pequeno do que os demais documentos oficiais do Papa, surge escrito com a habitual clareza e intensidade mas , ainda assim, denso e completo, e que coloca os pontos nos «is» numa série de questões pastorais e teológicas de grande relevância, a partir do já esperado enquadramento conciliar. Uma questão que angustia muitos crentes, e frequentemente lhes parece injusta, é referida logo no ponto 6, para que fique claro que ninguém se salva sozinho: «O Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana».
Seis pontos mais adiante retoma um argumento que já lhe conhecemos, a propósito das formas distintas de se ser e de se ser santo: «quero assinalar que também o “génio feminino” se manifesta em estilos femininos de santidade, indispensáveis para refletir a santidade de Deus neste mundo» e invoca figuras como Hildegarda de Bingen, Brígida, Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux, embora alegando que «interessa-me sobretudo lembrar tantas mulheres desconhecidas ou esquecidas que sustentaram e transformaram, cada uma a seu modo, famílias e comunidades com a força do seu testemunho». Mas também são referidos os santos do sentido de humor – São Tomas Moro, São Vicente de Paulo, São Filipe Néri –, propondo-nos mais uma virtude a desenvolver naqueles que nos estão confiados nas tarefas de evangelização, como um manual de bem viver para todas as pessoas de boa vontade, que não desejam uma vida medíocre, e uma ilustração lúcida e oportuna do que é a saúde mental («um santo não é uma pessoa excêntrica, distante, que se torna insuportável pela sua vaidade, negativismo e ressentimento») e a normalidade («há muitos casais santos, onde cada cônjuge foi um instrumento para a santificação do outro»), no seio de um mundo vencido, alquebrado, descontente e esquecido de que a essência da decência se revela na alegria duradoura e na felicidade daqueles que são voluntariamente livres: livres das coisas, livres do egoísmo, antes agarrados à «“santa indiferença”» proposta por Santo Inácio de Loyola, na qual alcançamos uma estupenda liberdade interior».
Mais adiante, o Papa sugere a cada leitor – a quem trata por tu – que seja santo «lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais», em pequenos gestos como os do Cardeal Nguyen van Thuan, que decidiu «viver o momento presente, cumulando-o de amor», e que referia aproveitar «as ocasiões que vão surgindo cada dia para realizar ações ordinárias de maneira extraordinária». E recorda que não é fácil construir a necessária paz porque as pessoas são difíceis mas a todos é preciso acolher: os «um pouco estranhos, as pessoas difíceis e complicadas, os que reclamam atenção, aqueles que são diferentes, aqueles que são muito fustigados pela vida, aqueles que cultivam outros interesses».
Quanto aos critérios para avaliar a santidade dos que merecem o reconhecimento «oficial», «nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa». Portanto, nada de «super-homens» ou de mulheres-maravilha, isso só nos impediria de ver quantos santos viajam connosco no autocarro do dia-a-dia.
O ponto 58 é sinal obrigatório dirigido ao frágil coração da Igreja: «Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e manietar o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor (…) porque parece submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica porque tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos.» E o Papa Francisco cita Paulo de Tarso: «é no amor que está o pleno cumprimento da lei»; isto é, «olhar e agir com misericórdia: isto é santidade», uma santidade que se alcança pela oração, pelo discernimento, pela abertura humilde e confiada à vontade do Espírito Santo ou, como rezava Tomás Moro, o corajoso: «Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. (…) e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama “eu”. Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros». Ao volante da vida ou noutro momento qualquer.