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Cristina Sá Carvalho
Opinião de Cristina Sá Carvalho
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Condutores de domingo

10 abr, 2018 • Opinião de Cristina Sá Carvalho


A nova exortação do Papa coloca os pontos nos «is» numa série de questões pastorais e teológicas de grande relevância, a partir do já esperado enquadramento conciliar.

D. José Policarpo costumava dizer que se na diocese de Lisboa todos os católicos que vão à missa ao domingo fossem bons condutores, isto é, que guiassem segundo as regras de trânsito e o espírito cristão de respeito pela pessoa, o trânsito na cidade melhoraria substancialmente. Sem recurso ao Código das Estradas, aliás, a nenhum Código, é isso que o Para Francisco nos vem propor com a sua mais recente Exortação paternal, «Alegrai-vos e exultai», sobre aquilo que podemos ser: os santos de ao pé da porta, condutores da vida inspirados pela vivência verdadeira e sincera do domingo, que caminham a contracorrente – guiando bem, para variar! – «a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam… perseguidas simplesmente por ter lutado pela justiça, ter vivido os seus compromissos com Deus e com os outros».

Sendo um texto bastante mais pequeno do que os demais documentos oficiais do Papa, surge escrito com a habitual clareza e intensidade mas , ainda assim, denso e completo, e que coloca os pontos nos «is» numa série de questões pastorais e teológicas de grande relevância, a partir do já esperado enquadramento conciliar. Uma questão que angustia muitos crentes, e frequentemente lhes parece injusta, é referida logo no ponto 6, para que fique claro que ninguém se salva sozinho: «O Senhor, na história da salvação, salvou um povo. Não há identidade plena, sem pertença a um povo. Por isso, como indivíduo isolado, mas Deus atrai-nos tendo em conta a complexa rede de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana».

Seis pontos mais adiante retoma um argumento que já lhe conhecemos, a propósito das formas distintas de se ser e de se ser santo: «quero assinalar que também o “génio feminino” se manifesta em estilos femininos de santidade, indispensáveis para refletir a santidade de Deus neste mundo» e invoca figuras como Hildegarda de Bingen, Brígida, Catarina de Sena, Teresa de Ávila e Teresa de Lisieux, embora alegando que «interessa-me sobretudo lembrar tantas mulheres desconhecidas ou esquecidas que sustentaram e transformaram, cada uma a seu modo, famílias e comunidades com a força do seu testemunho». Mas também são referidos os santos do sentido de humor – São Tomas Moro, São Vicente de Paulo, São Filipe Néri –, propondo-nos mais uma virtude a desenvolver naqueles que nos estão confiados nas tarefas de evangelização, como um manual de bem viver para todas as pessoas de boa vontade, que não desejam uma vida medíocre, e uma ilustração lúcida e oportuna do que é a saúde mental («um santo não é uma pessoa excêntrica, distante, que se torna insuportável pela sua vaidade, negativismo e ressentimento») e a normalidade («há muitos casais santos, onde cada cônjuge foi um instrumento para a santificação do outro»), no seio de um mundo vencido, alquebrado, descontente e esquecido de que a essência da decência se revela na alegria duradoura e na felicidade daqueles que são voluntariamente livres: livres das coisas, livres do egoísmo, antes agarrados à «“santa indiferença”» proposta por Santo Inácio de Loyola, na qual alcançamos uma estupenda liberdade interior».

Mais adiante, o Papa sugere a cada leitor – a quem trata por tu – que seja santo «lutando pelo bem comum e renunciando aos teus interesses pessoais», em pequenos gestos como os do Cardeal Nguyen van Thuan, que decidiu «viver o momento presente, cumulando-o de amor», e que referia aproveitar «as ocasiões que vão surgindo cada dia para realizar ações ordinárias de maneira extraordinária». E recorda que não é fácil construir a necessária paz porque as pessoas são difíceis mas a todos é preciso acolher: os «um pouco estranhos, as pessoas difíceis e complicadas, os que reclamam atenção, aqueles que são diferentes, aqueles que são muito fustigados pela vida, aqueles que cultivam outros interesses».

Quanto aos critérios para avaliar a santidade dos que merecem o reconhecimento «oficial», «nem tudo o que um santo diz é plenamente fiel ao Evangelho, nem tudo o que faz é autêntico ou perfeito. O que devemos contemplar é o conjunto da sua vida, o seu caminho inteiro de santificação, aquela figura que reflete algo de Jesus Cristo e que sobressai quando se consegue compor o sentido da totalidade da sua pessoa». Portanto, nada de «super-homens» ou de mulheres-maravilha, isso só nos impediria de ver quantos santos viajam connosco no autocarro do dia-a-dia.

O ponto 58 é sinal obrigatório dirigido ao frágil coração da Igreja: «Muitas vezes, contra o impulso do Espírito, a vida da Igreja transforma-se numa peça de museu ou numa propriedade de poucos. Verifica-se isto quando alguns grupos cristãos dão excessiva importância à observância de certas normas próprias, costumes ou estilos. Assim se habituam a reduzir e manietar o Evangelho, despojando-o da sua simplicidade cativante e do seu sabor (…) porque parece submeter a vida da graça a certas estruturas humanas. Isto diz respeito a grupos, movimentos e comunidades, e explica porque tantas vezes começam com uma vida intensa no Espírito, mas depressa acabam fossilizados... ou corruptos.» E o Papa Francisco cita Paulo de Tarso: «é no amor que está o pleno cumprimento da lei»; isto é, «olhar e agir com misericórdia: isto é santidade», uma santidade que se alcança pela oração, pelo discernimento, pela abertura humilde e confiada à vontade do Espírito Santo ou, como rezava Tomás Moro, o corajoso: «Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. (…) e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama “eu”. Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros». Ao volante da vida ou noutro momento qualquer.

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  • MASQUEGRACINHA
    18 abr, 2018 TERRADOMEIO 16:14
    (...) "Onde estão os sinais que Deus envia? / Onde estão, que os procuro noite e dia / Sem nunca ver cumprido o meu desejo? // Não os vejo e não sei se eu, que os procuro, / Os não encontro porque sou impuro, / Ou sou impuro porque os não vejo." ("Visitação", Reinaldo Ferreira)
  • anónimo
    16 abr, 2018 Porto 21:41
    Não é só pela recusa dos interesses pessoais que se atinge a fé, nós não podemos fugir à nossa natureza nem ambicionar atingir patamares sem o Seu direto consentimento, como se fosse possível, à sua margem, obter frutos pelo esforço individual (na recusa dos rebuçados que a natureza nos proporciona). Muitas das vezes estamos como o náufrago no meio do mar, sem nada para nos agarrarmos e mesmo depois de muitas chamadas, invocando e afirmando ter a certeza, de que Ele está ali, nada optemos em troca, apenas o barrulho do vento e nada mais, horas e horas esperando sem nada mudar. Mesmo tendo ultrapassando todas as tentações continuará tudo na mesma. Nada denuncia outra coisa que não a crua realidade. Parece dizer “quando essa tua certeza se dissipar eu auxilio-te, não antes”, mas… que sentido tem isso? Porquê esse desprezo pelas minhas preces? O nosso mundo é feito de sinais e no entanto os sinais não existem, o seu significado remete para uma alegoria muito para além do nosso imaginário, atribuímos-lhe valores de forma inconsciente, e no entanto nessa extensão do limbo noturno (sem artifício, todos nus na sua ingenuidade nativa) são-nos transmitidas mensagens para seguirmos no sentido das respostas. Pesquizamos na net um produto e vem momentos depois, com a esperteza saloia, o anuncio de um desses produtos, natural, o mesmo não se passa com os sinais deslocalizados no tempo e no espaço, quem gere esses sinais? Um exemplo que me intrigou foi isso mesmo, acordei angustiado, oprimido, náufrago sem tábua alguma, porquê? Liberta-me Senhor desta angústia, basta Tu quereres, dai-me paz, mas nada se moveu (sinal algum) em meu redor em várias horas, parecia definitiva, para ficar, andava de um lado para o outro, beliscando o trabalho, como tentando fugir para lado nenhum e liguei o rádio (antena 2) e ouvi um recitador com um enfase nas palavras magnífico (tipo teto da capela Sistina) “só te peço uma única coisa, paciência” esta frase dito num entoar deslumbrante deu-me tanta tranquilidade, tão doce, tão fácil de cumprir que nada mais fiz para lutar contra esse algo que me oprimia, continuei o trabalho mas horas depois conclui:- Não o vou completar, é impossível! Pois esta parte vai exigir pelo menos mais três horas, enfim, o que não tem remédio remediado está, seguindo... Para meu espanto, “a máquina” que testei antes de começar o trabalho seguinte estava mal calibrada” extraordinariamente mal calibrada, tendo como consequência não ter de passar essa fase, passava já para o final. Bá! Coincidências! (certo, coincidências.) PS: Tinha tratado todas as imagens para as peças de paginação, recortes de digitalização, individualização de cada imagem de forma autónoma, ampliação e impressão, ficou então para tratar as miniaturas para acompanhar as peças, cada folha A4 tinha de ser reduzida para A5 e no passo seguinte unidas por páginas respeitando a encadernação, fui à janela e pensava em que programa iria utilizar, todos iriam demorar muito tempo, enfim. Regressei e imprimi uma página, a impressora apresentou-me a imagem em A5, esplendido.
  • MASQUEGRACINHA
    10 abr, 2018 TERRADOMEIO 16:37
    Gostei muito que nos tenha trazido as palavras do Papa, que merece sempre divulgação. Agora, sendo relativamente fácil "reflectir algo de Jesus Cristo", mesmo para um agnóstico ou ateu, a dificuldade está em ir para lá do "algo", ou seja, em aceitar um elevado grau de sacrifício pessoal por amor aos outros, e nestes a Deus. Em resumo, e no mínimo, aceitar ser o acolhedor carrinho-de-apoio das pessoas complicadas, difíceis e "com outros interesses". Muito provavelmente, oportunistas e ingratas - e, ainda mais provavelmente, encarando com naturalidade o seu oportunismo e ingratidão, dado o amor com que sempre são tratadas... que, aliás, as mais das vezes, só as provoca e exacerba. Paradoxal. Portanto, só um santo mesmo, e daí não me parecer que a santidade esteja, de facto, ao alcance de todos, religiosos ou não. Por outro lado, mas no mesmo sentido, a "santa indiferença", que, não duvido, proporciona estupenda liberdade interior, também não será um convite a ainda mais abuso, ou a aceitá-lo como natural? É que as encarnações desse Maligno cúpido, concreto e real, de que o Papa também fala, andam por aí, insaciáveis... Nem autocarros cheios de santos indiferentes, embora plenos de liberdade interior, os comoverão. Acho que até muito pelo contrário, é também disso que se alimentam.