02 mar, 2018
Trump e todos os defensores das armas nos EUA colocam a culpa dos massacres na doença mental; dizem que estes tiroteios são casos mentais, actos de homens loucos. É uma reacção calibrada para desviar atenções do óbvio ululante: a absurda facilidade com que um americano compra metralhadoras é a causa dos massacres tão específicos da América; a América não tem mais doentes mentais per capita do que os outros países, tem é a maior concentração de armas pessoais do mundo. E não estamos a falar de pistolas. Um americano compra uma metralhadora M-16 como um português compra um micro-ondas.
Convém porém frisar que a reacção de Trump é bastante comum. Associar “violência” e “doença mental” é um reflexo mental ou moral que até se compreende. É confortável pensar que a violência, dos massacres ao suicídios, passando pelas fábricas de morte (comunismo, jihadismo, nazismo), só pode nascer em pessoas loucas, pessoas que são estruturalmente loucas ou que estão momentaneamente loucas; esta loucura, estrutural ou conjuntural, permite colocar aquelas pessoas fora do perímetro da humanidade. São “doentes” ou, num excesso retórico, “monstros”.
Nesta visão falsa e reconfortante, o acto de violência não é uma decisão livre e consciente, é uma falha inconsciente de um doente mental que está abaixo da humanidade devido à sua inimputabilidade, ou é um acto monstruoso de um ser luciférico que está ainda mais abaixo da humanidade porque é a própria encarnação de Belzebu. Estas duas evasões (a doença, o mal absoluto) evitam o grande confronto: será que eu poderia ter cometido aquele crime? Será que eu poderia ter entrado naquele mal? Será que eu, noutras circunstâncias, poderia ter sido seduzido por um dos “ismos” que legitimam a morte de milhões? Será que eu também tenho um ponto sem retorno? Antes de partir, antes desse ponto sem retorno, a nossa sanidade dá sinais de aviso como uma corda a desfazer-se?
O erro prolonga-se numa ofensa ao próprio doente mental, que surge aqui diabolizado enquanto grande reservatório de violência da humanidade. O que é trágico, visto que o doente mental é sobretudo uma vítima da violência.
Desde quando é que o homicídio, o massacre e o suicídio só podem ser compreendidos à luz da doença mental? Então a ira, o ódio, as códigos de honra, o ciúme, a paixão, o fanatismo ideológico, a virtude ensimesmada, a inteligência amoral ou a hubris não contam para nada? Milénios de literatura, de Moisés e Homero até Tolstoi e O’Connor, não nos ensinaram nada sobre a condição humana? “Evil is not crazy”, dizia há dias Fareed Zakaria a respeito do massacre de Las Vegas.
O mal é uma escolha consciente e imputável, não é uma doença inimputável, não é uma “condição médica”. Para reforçar este ponto, olhe-se para uma realidade bem portuguesa: a violência doméstica. Existe uma tendência para classificar como “monstros” ou como “doentes” os homens que assassinam mulheres. Mas Adelino Briote, o último grande assassino desta galeria, não estava fora de si quando matou, estava calmíssimo. Ele matou quatro pessoas à facada em nome de uma ideia de honra masculina perdida entre eras. Podemos considerar aquele código moral uma aberração, mas não podemos negar a sua existência. E, já agora, podemos imaginar o número de mortos no Portugal da violência doméstica se os Adelinos e os Palitos tivessem acesso fácil e legal a metralhadoras.
É importante falarmos deste ponto, porque o nosso tempo “científico” e “médico” tem dificuldade em aceitar a existência do mal enquanto escolha livre e consciente. O lero-lero de Trump encaixa bem no ar deste tempo que esconde o mal atrás do biombo da inimputabilidade médica. O que é trágico, visto que esta linha de raciocínio não evita apenas o mal, também evita a esperança. Se os actos de violência são inevitabilidades médicas, se são cometidos sem consciência, se não são escolhas, então os indivíduos em questão não podem fazer o caminho da redenção. Se não têm inferno também não têm paraíso. Por outras palavras, o nosso tempo recusa o confronto com o mal, porque tem vergonha do bem que Caleb traz na ponta da espada.