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Henrique Raposo
Opinião de Henrique Raposo
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Nem ateu nem fariseu

​O mal não é doença

02 mar, 2018 • Opinião de Henrique Raposo


A América não tem mais doentes mentais per capita do que os outros países, tem é a maior concentração de armas pessoais do mundo. Um americano compra uma metralhadora M-16 como um português compra um micro-ondas.

Trump e todos os defensores das armas nos EUA colocam a culpa dos massacres na doença mental; dizem que estes tiroteios são casos mentais, actos de homens loucos. É uma reacção calibrada para desviar atenções do óbvio ululante: a absurda facilidade com que um americano compra metralhadoras é a causa dos massacres tão específicos da América; a América não tem mais doentes mentais per capita do que os outros países, tem é a maior concentração de armas pessoais do mundo. E não estamos a falar de pistolas. Um americano compra uma metralhadora M-16 como um português compra um micro-ondas.

Convém porém frisar que a reacção de Trump é bastante comum. Associar “violência” e “doença mental” é um reflexo mental ou moral que até se compreende. É confortável pensar que a violência, dos massacres ao suicídios, passando pelas fábricas de morte (comunismo, jihadismo, nazismo), só pode nascer em pessoas loucas, pessoas que são estruturalmente loucas ou que estão momentaneamente loucas; esta loucura, estrutural ou conjuntural, permite colocar aquelas pessoas fora do perímetro da humanidade. São “doentes” ou, num excesso retórico, “monstros”.

Nesta visão falsa e reconfortante, o acto de violência não é uma decisão livre e consciente, é uma falha inconsciente de um doente mental que está abaixo da humanidade devido à sua inimputabilidade, ou é um acto monstruoso de um ser luciférico que está ainda mais abaixo da humanidade porque é a própria encarnação de Belzebu. Estas duas evasões (a doença, o mal absoluto) evitam o grande confronto: será que eu poderia ter cometido aquele crime? Será que eu poderia ter entrado naquele mal? Será que eu, noutras circunstâncias, poderia ter sido seduzido por um dos “ismos” que legitimam a morte de milhões? Será que eu também tenho um ponto sem retorno? Antes de partir, antes desse ponto sem retorno, a nossa sanidade dá sinais de aviso como uma corda a desfazer-se?

O erro prolonga-se numa ofensa ao próprio doente mental, que surge aqui diabolizado enquanto grande reservatório de violência da humanidade. O que é trágico, visto que o doente mental é sobretudo uma vítima da violência.

Desde quando é que o homicídio, o massacre e o suicídio só podem ser compreendidos à luz da doença mental? Então a ira, o ódio, as códigos de honra, o ciúme, a paixão, o fanatismo ideológico, a virtude ensimesmada, a inteligência amoral ou a hubris não contam para nada? Milénios de literatura, de Moisés e Homero até Tolstoi e O’Connor, não nos ensinaram nada sobre a condição humana? “Evil is not crazy”, dizia há dias Fareed Zakaria a respeito do massacre de Las Vegas.

O mal é uma escolha consciente e imputável, não é uma doença inimputável, não é uma “condição médica”. Para reforçar este ponto, olhe-se para uma realidade bem portuguesa: a violência doméstica. Existe uma tendência para classificar como “monstros” ou como “doentes” os homens que assassinam mulheres. Mas Adelino Briote, o último grande assassino desta galeria, não estava fora de si quando matou, estava calmíssimo. Ele matou quatro pessoas à facada em nome de uma ideia de honra masculina perdida entre eras. Podemos considerar aquele código moral uma aberração, mas não podemos negar a sua existência. E, já agora, podemos imaginar o número de mortos no Portugal da violência doméstica se os Adelinos e os Palitos tivessem acesso fácil e legal a metralhadoras.

É importante falarmos deste ponto, porque o nosso tempo “científico” e “médico” tem dificuldade em aceitar a existência do mal enquanto escolha livre e consciente. O lero-lero de Trump encaixa bem no ar deste tempo que esconde o mal atrás do biombo da inimputabilidade médica. O que é trágico, visto que esta linha de raciocínio não evita apenas o mal, também evita a esperança. Se os actos de violência são inevitabilidades médicas, se são cometidos sem consciência, se não são escolhas, então os indivíduos em questão não podem fazer o caminho da redenção. Se não têm inferno também não têm paraíso. Por outras palavras, o nosso tempo recusa o confronto com o mal, porque tem vergonha do bem que Caleb traz na ponta da espada.

Comentários
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  • António Costa
    03 mar, 2018 Cacém 15:05
    Bem em Portugal, normalmente um forno micro-ondas "chega" por família...nos EUA existem autênticos arsenais "caseiros".
  • Vera
    02 mar, 2018 Palmela 13:15
    "Estas duas evasões (a doença, o mal absoluto) evitam o grande confronto: será que eu poderia ter cometido aquele crime? Será que eu poderia ter entrado naquele mal? Será que eu, noutras circunstâncias, poderia ter sido seduzido por um dos “ismos” que legitimam a morte de milhões? Será que eu também tenho um ponto sem retorno? Antes de partir, antes desse ponto sem retorno, a nossa sanidade dá sinais de aviso como uma corda a desfazer-se?" "O erro prolonga-se numa ofensa ao próprio doente mental, que surge aqui diabolizado enquanto grande reservatório de violência da humanidade. O que é trágico, visto que o doente mental é sobretudo uma vítima da violência. " É verdade, Henrique Raposo! «que o doente mental é uma vítima da violência» isto é 'a senha', é um sinal, do que faz sentido: não há mentalidade, que resista a violências!!! se não houvesse violência, não havia doentes mentais! por enquanto eu equilibro-me,mas, se a violência vier ter comigo, eu não sei se responderei pelos meus actos! queira Deus que não aconteça! Por que morreu Jhone Lennon? Por que morreu Elvis Presley? Por que morreu Michael Jackson? Por que morreu Elis Regina? eram pessoas passivas! e passaram-se... por quê? porque...não preciso de dizer porquê. Eu só quero,que o povo a que pertenço,continue a comprar Micro-ondas! que não se envolva, nem se deixe envolver,por aquilo que não nos faz falta nenhuma!!! Eu nem micro-ondas tenho,porque tenho que ligar o calorífero. Mais uma vez,Obrigada Henrique Raposo.
  • Vera
    02 mar, 2018 Palmela 11:52
    Henrique Raposo, hoje venho pedir-lhe um favor: antes de ler este comentário seu, que vou fazê-lo seguidamente, acabo de sair do 'Expresso Curto', e pelo começo do seu texto, já vi que a conversa que vou encontrar aqui, vai bater na mesma tecla, daquilo que o seu colega Valdemar Cruz, escreveu! eu venho de lá emocionada, com a História do Elefante..., e eu considero que aquilo tudo, está no topo de uma lógica indiscriminável e não tenho outro meio de agradecer, senão pedir-lhe que agradeça 'por mim' ao seu colega! Faça isso Henrique Raposo! Obrigada. Volto já.
  • João Lopes
    02 mar, 2018 Viseu 10:33
    Análise profunda e interessante de HR: «o nosso tempo recusa o confronto com o mal, porque tem vergonha do bem». Quando se defende a vida em todas as circunstâncias, defende-se a Humanidade. Hoje, as pessoas têm muito medo, sentem-se mais inseguras. Nos países onde se legalizou o aborto e a eutanásia para os seres humanos mais frágeis e indefesos, já ninguém se pode sentir em segurança. Todos os promotores da cultura da morte atentam contra a dignidade da pessoa humana: são os "bárbaros" e os "monstros" dos nossos tempos…