09 jan, 2018
Miguel Oliveira Rodrigues, chefe da Polícia de Segurança Pública, apresentou provas de Doutoramento com uma investigação sobre rendimento académico de crianças e adolescentes (11-18 anos) cujas mães apresentaram queixa por violência doméstica.
É claramente uma boa notícia que os núcleos de investigação das universidades acolham estudantes com um perfil diversificado e uma inserção profissional que ofereça condições para olhar problemas antigos com uma nova visão: o investigador colabora com o Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento, da Universidade Lusófona, tendo anteriormente estudado Serviço Social e tratou as respostas de 700 (setecentas) mulheres aos inquéritos a que foram submetidas entre 2015 e 2016 em 277 esquadras da PSP, conforme salienta o citado artigo.
Segundo a mesma fonte, os filhos destas vítimas apresentaram uma taxa de retenção escolar de 56,3%, das quais 87% foram aplicadas após um episódio de violência doméstica, enquanto a média nacional de retenções, para os mesmos anos lectivos, foi de 10,5% (8,6% para o 2º ciclo e 12,3% para o 3º).
Isto significa que as crianças referidas no estudo não só são vítimas da violência que sofrem as suas mães, eventualmente também tendo sofrido algum tipo de abuso directo (embora que indirecta será essa de ouvir/ver a mãe a ser agredida verbal e fisicamente) como são vítimas da inoperância da escola e, em geral, de um sistema de proteção que, em dias bons, deveria impedir que juntassem, a um trauma familiar difícil de suportar e de superar, o trauma da retenção escolar.
Não transitar de ano significa perder o contacto com os colegas conhecidos e com os amigos, uma maior probabilidade de recomeçar os estudos com professores estranhos, a possibilidade de ser enviado para essa maravilha da pedagogia que é a turma de repetentes, o estigma que, apesar de tudo, a retenção promove, e a necessidade de lidar com muitas das razões que propagam o desenvolvimento de um complexo núcleo de sentimentos de incapacidade, perturbação e menos-valia, nomeadamente a reação da própria família à retenção.
O que pensará uma criança quando vai levar para casa mais essa preocupação ou desgosto, e que pensará quando a resposta for de indiferença e alheamento, ou outras coisas piores?
Como o artigo de Carlos Ferro está bem pensado e bem escrito, para melhor esclarecer a situação tratada recorre a algumas entrevistas, nas quais o trabalho é, geralmente, saudado. Também sai reforçada a ideia de que quem lida com estas situações de violência (e não será muito diferente noutras formas de abuso, marginalidade ou pobreza) já teria antecipado os resultados obtidos pela investigação. Sabíamos que as escolas sinalizam os casos suspeitos, pelo menos os mais evidentes, à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, mas, mesmo assim, a resposta emanada do Gabinete do Ministro da Educação é surpreendente: as fontes citadas parecem acreditar que os casos têm a atenção técnica necessária pois “são encaminhados para o Serviço de Psicologia da escola” ou, como refere o presidente do Conselho de Escolas, estas “terão gabinetes com professores e outros técnicos.”
A questão da violência doméstica sobre as crianças e os adolescentes é um assunto MUITO sério e não estão em causa, “apenas”, as crianças e adolescentes que são vítimas directas desse cancro social que alastra e se multiplica a cada ano que passa. Todas as crianças e adolescentes que estão nas escolas são afectados, o corpo docente também: não seria inútil estudar como e por que motivo cresce o bullying escolar e as agressões de familiares e discentes aos professores.
De qualquer modo, se existem as estruturas e técnicos necessários ao acompanhamento dos alunos nas escolas – os psicólogos residentes no rácio adequado ao número de alunos, os espaços e o material técnico necessário para um acompanhamento de todos os alunos, as boas práticas de prevenção do insucesso escolar e da patologia mental, o trabalho em equipa com os médicos escolares, os técnicos de serviço social e os terapeutas – não se compreende uma taxa de insucesso escolar cinco vezes superior à das outras crianças e adolescentes.
De facto, adivinha-se facilmente que muitos destas vítimas se tornam, simplesmente, vítimas maiores, vítimas da desestrutura da família e vítimas da ineficácia do sistema educativo. Um professor sobrecarregado e sem formação em diagnóstico pode detectar, um director de turma pode interessar-se e esforçar-se por acompanhar, mas tudo isso é aleatório e frágil, improvisado, quando a responsabilidade é da comunidade e do Estado, como um todo: numa sociedade civilizada, todas as crianças e todos os adolescentes devem poder viver uma vida segura, protegida, orientada, digna e plena.
Os desvios, as incúrias e os cansaços dos adultos não são uma responsabilidade sua, mas contribuem para os transformar numa vítima persistente, às vezes, num violentador eficiente.