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Violência doméstica – Onde estamos a falhar? Reportagem de Liliana Carona
Ouça a reportagem 'Violência Doméstica: onde estamos a falhar?' da jornalista Liliana Carona

Reportagem

Quebrar o ciclo da violência doméstica. "Estava grávida e fui à GNR para me tirar de casa"

23 out, 2023 • Liliana Carona


“A violência doméstica é uma violência de género, estrutural e enraizada”, denuncia investigadora. Vítima faz apelo: "não retirem a queixa, nunca desistam". Os números estabilizaram em Portugal, mas continuam em alta. Desde o início deste ano, houve 17 homicídios por violência doméstica: 15 mulheres, uma criança e um homem. Onde estamos a falhar?

O amor deu lugar a um sentimento sombrio e doentio. Isilda foi vítima de violência doméstica quando estava grávida de gémeos. As agressões, testemunhadas pelas duas filhas mais velhas, continuaram nos meses seguintes ao parto. Foi ameaçada com um machado e houve uma tentativa de violação. A irmã e a GNR salvaram-na.

Isilda, cuja história conheceremos melhor mais à frente, faz parte da estatística negra em Portugal. Oitenta e um por cento das vítimas de violência doméstica são mulheres, de acordo com o Relatório de Monitorização de Violência Doméstica. No ano de 2021, 77% dos processos foram arquivados e, destes, 81% deveu-se ao facto de não existir prova. Desde o começo deste ano houve 17 homicídios por violência doméstica: 15 mulheres, uma criança e um homem.

A violência doméstica é um tipo de violência de género que afeta sobretudo mulheres, mas também crianças. Atualmente, há 1.500 pessoas em casas de acolhimento, 48% são crianças acompanhadas pelas mães, 99% são mulheres, 1% homens.

A maioria das detenções acontece em flagrante delito. Quer a maioria dos agressores, quer a maioria das vítimas situam-se na faixa etária dos 41 aos 50 anos e grande parte dos casos ocorre dentro de casa.

O distrito da Guarda é umas das zonas do país que regista taxas de incidência superiores à verificada em termos nacionais.

No auditório do Centro de Interpretação da Serra da Estrela (CISE), em setembro, vários intervenientes debateram políticas de prevenção e combate locais, no âmbito da problemática da violência doméstica. Seia é o concelho da Guarda com mais denúncias. Em 2022, e segundo a GNR, foram registados 91 casos e no primeiro semestre deste ano quase meia centena.

"Violência doméstica é estrutural e enraizada”

Segundo o Relatório Anual de Monitorização do Ministério da Administração Interna, de 2021, os distritos de Aveiro (2,7), Castelo Branco (2,9), Faro (3,4), Guarda (2,7), Lisboa (2,7), Portalegre (3,1), Setúbal (2,9), R.A Açores (4,1), R.A. Madeira (3,1), registaram taxas de incidência superiores à verificada em termos nacionais (2,6).

A taxa de incidência mais baixa registou-se no distrito de Santarém (1,9). Nos casos da suspensão provisória do processo (SPP), os valores mais elevados foram encontrados nas comunicações da Guarda (26%), Ribeira Grande (18%), Paredes (17%) e Santa Comba Dão (17%).

Estes são números que continuam a preocupar quem investiga há mais de 20 anos a violência de género, como Elza Pais.

“A violência doméstica é uma permanência que não desaparece, o que é que temos feito em termos de políticas públicas? Desde o I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica em 1999, até ao último, a Estratégia para a Igualdade e Não Discriminação?”, questiona a investigadora, alertando que “a violência doméstica se mantém em patamares muito elevados”, com cerca de 30 mil queixas às forças de segurança todos os anos.

“Na última década viu-se uma estabilização em alta, que não nos satisfaz, quer dizer que o fenómeno se mantém, é permanente, 20 mil pessoas, sobretudo mulheres e destas 30 por ano, em média, nos últimos 10 anos, morrem. E olhamos para este fenómeno e tentamos naturalizá-lo, quase que cruzamos os braços porque tudo já foi feito. Mas ainda assim é preciso um novo ciclo”, conclui a socióloga, à margem do evento organizado pela Mulheres Socialistas (MS) da Concelhia de Seia.

“É maior o perigo de uma mulher ser agredida ou assassinada em sua própria casa, num espaço que devia ser de segurança, do que na rua”, considera Elza Pais, relembrando que “a violência doméstica é uma violência de género, estrutural e enraizada”.

“Há um desrespeito, um poder desigual entre homens e mulheres, que leva à violência contra as mulheres, porque se normaliza a superioridade masculina e o poder do homem no quadro de conflitualidades no contexto de intimidade. Isto fragiliza as mulheres na sua inserção profissional, familiar e social, mas os homens que agridem também não ficam melhor. Quem agride, também o faz porque não sabe construir uma relação saudável, sem uso da força. Quando combatemos a violência de género estamos a proteger as mulheres, mas também estamos a dizer aos homens que queremos novos homens, com novas atitudes, e mentalidades”, afirma a investigadora.

Crianças são vítimas diretas. Relato na primeira pessoa

Se a violência doméstica atinge 80% das mulheres, também atinge os seus filhos. Elza Pais anuncia estar a fazer um trabalho de investigação “em que na grande maioria das agressões, os filhos estão ali, e se estão ali, não há violência indireta, é direta”, observa.

"Não retirem a queixa. Eles podem ter uma pena pequena, mas nunca desistam"

A investigadora salienta ainda que “o número de silenciamento é brutal, dois terços, 66% das vítimas de qualquer tipo de violência contra as mulheres, continuam a não apresentar queixa, segundo um estudo europeu de 2014, da Agência Europeia dos Direitos Fundamentais”.

Foi por causa das crianças, dos quatro filhos menores, duas filhas de 9 e 12 anos, mais os gémeos recém-nascidos, (na altura dos factos), que Isilda Duarte, 46 anos, é agora um nome vivo, com história para contar.

“Não me importo de ser fotografada, nós vítimas de violência doméstica temos de demonstrar às outras raparigas que não é vergonha dizer que passámos por isso, temos de mostrar que nós conseguimos chegar aos nossos objetivos”, começa por destacar, a propósito de ter aceitado receber-nos em sua casa.

“Eu sou Isilda D., 46 anos, e fui vítima de violência doméstica, em 2011, estava grávida de gémeos, e foi durante a gravidez, e durante os primeiros três meses de vida deles, até a GNR me tirar de casa", revela.

Isilda, depois de ter sofrido agressões na presença das duas filhas mais velhas, ao fim de oito anos, decidiu voltar à relação, deu uma segunda oportunidade. "Foi o desabar da minha vida outra vez", classifica. "Não retirem a queixa. Eles podem ter uma pena pequena, mas nunca desistam. Eles vão fazer de tudo, como o pai dos meus filhos fez, prometeu-me mundos e fundos”, relembra.

As promessas não passaram de promessas e nunca mais esqueceu a noite de 25 de janeiro de 2012. “Desde agressão física, psicológica, com a mão, ameaçou-me com uma machada, a mim e aos meus filhos, ameaçou que matava os meus filhos todos. A primeira agressão foi de dia, mas depois durante a noite continuou, onde me tentou violar, fazer o que eu não queria”, recorda, emocionada.

Tinha 36 anos e o trauma do que viveu acompanha-a passado mais de uma década. “Tinha os meus filhos e filhas pequeninas, não queria que passassem mais, fui retirada de casa pela GNR, que me levou ao hospital nessa noite, fiquei com a parte do lado esquerdo com um osso partido na cara", recorda.

"Acabámos por ir para casa da minha irmã, mas depois sinalizaram-nos para uma casa-abrigo. Tive de ir ao Hospital de Coimbra, para fazer todos os exames, para depois o juiz ver que foi uma agressão, mas eu tinha marcas no rosto, não o podia esconder, ou disfarçar”, conta Isilda.

“Tem de haver independência para estas mulheres”

Foi a irmã de Isilda que fez a denúncia à GNR. Isilda foi vítima quando estava grávida e depois já com os bebés ao colo. Apesar de saber que não podia permanecer na sua moradia, hesitou em ir para uma casa-abrigo.

“Por um lado, não queria ir, porque ia para longe, mas saímos de casa no dia 26 de janeiro de 2012 e no dia 6 de fevereiro desse ano, fomos para uma casa-abrigo, onde estive cinco meses. Ir para uma casa-abrigo foi difícil, na zona do Porto, com quatro filhos, e mesmo quando regressámos não foi fácil, mas aprendi muito numa casa-abrigo, e vemos muita coisa. Foram pessoas que acarinharam as minhas filhas. E depois quando terminaram a escola, a minha irmã arranjou-me uma casa cá e voltei”, explica Isilda, a trabalhar atualmente como funcionária de uma superfície comercial.

Ainda hoje, não sabe explicar como não percebeu os sinais de alerta no começo da relação. “Não detetei, no início é tudo muito bonito. Mas depois, as acusações, desde ter amantes, não poder sair nem falar com ninguém porque já eram meus amantes, porque os filhos não eram dele. E os ciúmes compulsivos. Não deixar falar com amigos, cheguei ao ponto de não ter telemóvel, não me deixava falar com a família, nem com amigos”, recorda.

Depois da queixa, o agressor ficou impedido de a contactar. “Eu estava na casa-abrigo, e ele foi condenado a dois anos e meio de pena suspensa e não podia estar a menos de 500 metros de mim. Aquilo que me fez a mim, perdoei, tenho mágoa, mas agora o que fez aos meus filhos não perdoo, só Deus e eu é que sabemos”, diz Isilda.

Viver num sítio seguro foi fundamental para esta família se começar a recompor. As casas de acolhimento, centros de atendimento e as casas de emergência, integram a rede Nacional de Apoio à Vítima. A capacidade tem aumentado nos últimos anos, garante a presidente da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

Ainda assim, Sandra Ribeiro destaca um problema: “Neste momento temos praticamente 95% do território português coberto. Mas quem é que lá está? Estas mulheres e estas crianças quando vão sair e como vão sair? Estas mulheres ficam muito mais tempo do que era suposto. É preciso um trabalho forte com as autarquias locais, porque somos muito rápidos a resolver um problema, mas depois não conseguimos arranjar-lhes um emprego ou uma casa".

"Naquela noite, podia ter sido mais uma vítima morta de violência doméstica. Se não tivesse aceitado sair daquela situação, as minhas filhas teriam ficado sem o pai e sem a mãe"

A presidente da CIG explica que as vítimas são "desenraizadas completamente do seu local, da sua família, as crianças saem da escola onde andavam. A maior parte ficam desempregadas".

"O sistema é importante na proteção e intervenção, mas faltam medidas imediatas na habitação, que são muito precisas”, defende Sandra Ribeiro, lançando um repto: “precisamos de soluções criativas, não sei se passa por recuperação de património que já pertença às autarquias ou ao Estado, ou aproveitar o PRR, mas tem de haver uma solução, tem de haver independência para estas mulheres que não têm mais nada”.

“Não temos investido muito num trabalho preventivo”

Desde 2000, que o crime de violência doméstica é público e qualquer pessoa pode denunciar. Para a presidente da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, tem aumentado a perceção do fenómeno.

“Quando olhamos para os números, evoluímos muito, em dar confiança às vítimas, conseguimos aumentar a noção e perceção do que é ou não é violência doméstica. Muitas pessoas achavam que serem agredidas fazia parte dos relacionamentos. Temos um aumento tão grande de denúncias, que não está a aumentar o fenómeno, mas a perceção para reconhecerem e ganharem força para apresentarem queixa. Não podemos continuar neste cenário de termos todos os anos 27, 28, 29 mulheres mortas. Isto é muito, que é só o crime com mais vítimas mortais no nosso país. É um dos principais problemas sociais e criminais do nosso país”, considera Sandra Ribeiro, detetando que é preciso avaliar e monitorizar mais as políticas públicas.

A presidente da CIG insiste ainda na leitura de género dos números. “Até agosto já tínhamos 1.500 pessoas acolhidas e 48% são crianças, que são acolhidas pelas suas mães, 99% são mulheres, 1% homens. Elas querem sair das suas casas, porque já não têm condições de segurança para elas e para os seus filhos”, lamenta Sandra Ribeiro, apelando ao investimento na educação e formação.

“Temos uma Estratégia Nacional para a Igualdade e Não Discriminação que dura até 2030, e um dos planos da ação é específico para a violência. Intervir junto das pessoas agressoras, nunca houve tantos agressores em programas de reabilitação promovidos pela área da justiça, mas não temos investido muito num trabalho preventivo. Vai começar na educação para a cidadania, que tem de ser corajosa e que vai ter sempre anticorpos", denota Sandra Ribeiro.

Para a responsável da CIG, "há focos ruidosos a este género de educação aberta e com capacidade de falar dos temas e sem tabus, há sempre alguns pais, alguns ligados a partidos, e que são ruidosos".

Mais formação, porque “não basta ter o curso de Direito

É preciso falar de violência doméstica, “chamar para fora da zona de conforto, alunos, pessoal docente e não docente. A educação e formação é fundamental. Falhámos aqui”, assume Sandra Ribeiro, que quer ver mais formação também na área policial, nos médicos e enfermeiros, na área judicial, nos tribunais, nos magistrados e magistradas, porque diz: “não basta ter o curso de Direito, ninguém está apto para tudo, as pessoas sabem de um tema, se receberem formação coerente e eficiente”, conclui.

Os últimos 20 anos fazem muita diferença, na perspetiva da presidente da CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género.

Até 1976, “aquilo que existia era uma situação em que a própria lei atestava a menoridade das mulheres, elas não podiam fazer uma série de coisas sem autorização dos pais, ou dos maridos, e o conceito de violência doméstica nem existia. Era sempre aquela história, ela portou-se mal, ela deu origem a esta situação, era uma adúltera. A questão do homem enquanto chefe de família demorou a ser alterada, o artigo que dizia que o homem era o chefe de família, e que a mulher tinha o dever do cuidado da casa, isso estava escrito, e nós hoje ainda somos os filhos e os netos dessa forma de pensar, as mentalidades são muito difíceis de mudar, a lei é muito mais fácil de mudar”.

Sandra Ribeiro considera que as sentenças ou a atuação judicial “tem sido mais conservadora do que aquilo que a própria lei permite, porque a lei permite que quem saia imediatamente de casa seja o agressor e não a vítima, mas tendencialmente é a vítima que sai”.

A CIG, com o apoio da sua área governativa (Secretaria de Estado da Igualdade e Migrações), preparou uma campanha pública, de âmbito nacional, de prevenção e combate à violência doméstica. “Não Há Desculpas para a Violência Doméstica”.

A campanha foi apresentada no dia 29 de junho deste ano, numa sessão em que diversas entidades subscreveram ou renovaram o compromisso com o Pacto contra a Violência, um projeto que visa a criação e a formalização de uma rede de entidades parceiras com o Gabinete da secretária de Estado da Igualdade e Migrações (SEIM) e com a CIG, na mobilização de respostas de urgência e apoio ao trabalho das estruturas da Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica.

Contornos muito violentos em zonas mais despovoadas

Situações que envolvem crianças e com contornos muito violentos, têm marcado a capitã Andreia Lopes, chefe da secção de Ciências Sociais e Criminais da Direção de Investigação Criminal do Comando Operacional da GNR.

“Deixa-me sempre a pensar as situações que envolvem crianças, que constantemente presenciam situações de violência e que mais tarde resultam em lesões físicas para a mãe, isso vai deixar marcas muito grandes naquela criança. Já estamos a condicionar o seu crescimento. Situações de grande violência, com objetos e que pressupõe um grande sangue-frio por parte do agressor”, explica, recordando um caso ocorrido no passado mês de junho, no concelho de Seia, um homem, de 78 anos, suspeito de ter matado uma mulher, de 61, com um machado.

Agressores e vítimas situam-se maioritariamente na faixa dos 41 aos 50 anos. A capitã da GNR, Andreia Lopes alerta para a dificuldade na recolha de provas.

“Muitas vezes a prova restringe-se às declarações, mas, por exemplo, se a vítima não quiser ser sujeita a uma perícia médica, acabamos por ficar limitados e não ter provas suficientes. No ano de 2021, 77% dos processos foram arquivados, e destes 77%, 81% deveu-se ao facto de não existir prova. É muito importante que as vítimas não tenham vergonham e relatem às forças de segurança, para que possamos apoiar e fazer a emancipação de uma situação de violência”, apela a militar, que desde 2019 foi fazendo várias formações nesta matéria, inclusivamente o mestrado em estudos sobre as mulheres.

"As mentalidades são muito difíceis de mudar, a lei é muito mais fácil de mudar"

Particularizando o comando territorial da Guarda, a capitã Andreia Lopes analisa que a região segue a tendência nacional, ou seja, “as vítimas continuam a ser maioritariamente do sexo feminino, no primeiro semestre de 2022, representam uma percentagem de 77%, e no primeiro semestre de 2023: 79%, enquanto as vítimas de sexo masculino, são em número mais reduzido e representam percentagem de 22% e 20% respetivamente aos primeiros semestres de 2022 e 2023".

"No panorama nacional e se analisarmos o Relatório de Monitorização de Violência Doméstica que é publicado anualmente pela secretaria geral do MAI – Ministério da Administração Interna, 81% das vítimas são do sexo feminino e apenas 18% são homens. Existe uma supremacia de vítimas do género feminino.”

A capitã Andreia Lopes fala em violência de género, e demonstra que existem duas realidades no âmbito das detenções. “As detenções em flagrante delito, em que o militar presenciou o crime, ou detenções mediante mandado ou investigações em curso”.

Por outro lado, “os meses de verão são sempre os em que têm mais registo de crimes de violência doméstica. Alturas em que existe associado regulamentação do poder parental de crianças”, nota.

A militar da GNR destaca ainda que quando o crime acontece dentro de quatro paredes, é difícil o órgão criminal estar presente, mas o que acontece "é que quando é acionada a GNR, ainda presencia ameaças, ou o agressor encontra-se relutante à ação do militar”, lamenta.

De acordo com os dados de 2022 e 2023 (primeiro semestre), agressores e vítimas situam-se na faixa etária acima dos 41 aos 50 anos.

“A vítima, por vezes, está dependente do agressor, socialmente, nos meios mais pequenos, ainda se recrimina a mulher que sai de casa e que tem os filhos pequenos, ou que tem trabalho mais precário ou menos habilitações”, destaca Andreia Lopes.

A militar aponta a difícil mudança de mentalidade. “O crime de violência doméstica tem essa particularidade, é que o agressor não precisa de nenhuma formação especifica para agredir a vítima, no calor do momento ele usa um objeto que tem à mão, um candeeiro, uma chave de fendas, pode ser uma faca, qualquer objeto serve, e sim, nas regiões interiores, temos registo de armas de caça, machados, que o agressor tem acesso com facilidade”.

Andreia Lopes revela que as secções de policiamento comunitário têm apostado na sensibilização para a realidade da violência doméstica, sobretudo em âmbito escolar, e junto das pessoas mais vulneráveis, como os idosos.

“Se eu criança viver naquele ambiente de violência doméstica e se ninguém me disser que não é normal, o pai controlar a mãe, o que ela deve vestir, ou que ela não pode sair, eu vou crescer com a noção de que aquilo é normal e um dia quando tiver um namorado também vou achar que também é normal saber todos os passos da minha companheira. O crime de violência doméstica não começa com agressões físicas, começa com controlos mais dissimulados, violência psicológica. Não se apercebem logo que estão a ser vítimas”, elucida a chefe da secção de Ciências Sociais e Criminais da Direção de Investigação Criminal do Comando Operacional da GNR.

A mentalidade difícil de mudar, principalmente em meios interiores, isolados, é também observada pelo psicólogo Sérgio Viana, da Unidade Local de Saúde da Guarda, a trabalhar em Seia.

“Há alguns casos com contornos bastante violentos, com particularidades territoriais, esse isolamento tem repercussão nas próprias famílias, acaba por haver normalização de alguns comportamentos, a violência é velada e despercebida. Quase uma forma normal de se estar. Seia é o segundo concelho com maior população, mas os números são elevados. Mais do que uma sensação é uma realidade, uma tendência machista, temos machismos em Portugal, nas várias instituições e até ao nível do poder, isto tem de mudar”, defende o psicólogo.

Sérgio Viana apela a que não se esqueça o agressor. “Quando somos subjugados ao poder do agressor, deixamos de ser quem somos, e de ter liberdade para ser quem somos, passamos a ser dependentes, é preciso trabalhar a vítima, mas também o agressor, porque é daí que surge o problema”, conclui.

Ação das autarquias é urgente

Na mudança e no combate à violência doméstica, o papel das autarquias é apontado como essencial, por Célia Barbosa, vice-presidente do município de Seia.

“Nos últimos anos temos tido uma média de 70 casos de violência doméstica reportados pela GNR e PSP. Em 2022, com o apoio da CIG fizemos uma formação especializada de cerca de 90 horas, para técnicos de apoio a vítima, para ficarem capacitados e disponibilizamos atendimento personalizado. Integramos o CFAD- Centro de Formação Assistência e Desenvolvimento, com sede na Guarda, e com um centro descentralizado em Trancoso, que engloba nove municípios do distrito (Mêda, Trancoso, Fornos de Algodres, Celorico da Beira, Gouveia, Manteigas, Vila Nova de Foz Côa, Seia, Aguiar da Beira), com o objetivo de prevenir e combater a violência doméstica e a violência de género”, destaca sobre o trabalho realizado.

Mas a autarca não deixa de assumir a existência de um problema grave no concelho. “Aqui vemos a evolução da violência doméstica e temos uma representação significativa e nota-se que Seia, claramente tem um problema de violência doméstica. As leis existem, mas mudar mentalidades é mais difícil. No ano passado tivemos um caso muito violento de um idoso que matou a esposa à machada, outro de um filho que matou a mãe. Já existe legislação, mas as leis não mudam mentalidades, tem de haver mudança de valores culturais que estão muito enraizados, sobretudo junto da comunidade escolar”, defende Célia Barbosa.

Amélia Augusto, investigadora do Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior, dá como um bom exemplo de uma estratégia de territorialização para a prevenção e combate à violência doméstica de género, a Rede Violência Zero, na região da Cova da Beira, (Belmonte, Covilhã e Fundão), com partilha de práticas e conhecimentos em territórios de baixa densidade onde os recursos são escassos.

“Existe desde 2011 e em 2016 foi assinado um protocolo pela Secretaria de Estado para a Cidadania e Igualdade, que envolve 24 instituições e a vítima está no centro de atuação. Promovem ações de formação para públicos estratégicos, professores, auxiliares de ação educativa, forças da ordem, profissionais de saúde, magistrados. E depois de estarmos em ação com alunos, dizem: isto passa-se em minha casa e eu não sabia que isto era violência”, conta, concluindo, com base nos seus estudos, que “se há algo que marca a questão da violência doméstica, são os silêncios, os silêncios das vítimas, os silêncios de quem vê.”

Nos últimos 10 anos, uma média de 30 mulheres foram assassinadas pelos maridos ou companheiros. Isilda Duarte sabe que podia fazer parte desses números.

“Não se apaga o medo de a gente se voltar a relacionar com alguém, pensamos sempre que os homens são todos iguais e o receio dos meus filhos voltarem a sofrer. Espero que quem oiça ou quem leia, saiba dizer: eu consigo, eu vou sair da situação. Quem está a passar por violência doméstica tem de tomar o primeiro passo, não tenham vergonha nem medo de pedir ajuda", apela.

"Naquela noite, podia ter sido mais uma vítima morta de violência doméstica. Se não tivesse aceitado sair daquela situação. As minhas filhas teriam ficado sem o pai e sem a mãe. Seria mais uma vítima mortal desses monstros. Eu podia ter sido morta, mas tinha alguém que sabia o que se estava a passar e eu quis sair. O pai dos meus filhos só soube no dia julgamento quem fez a denúncia. Peçam ajuda, confiem em alguém que possa fazer algo”, aconselha.

E sonhos, Isilda? “O meu maior sonho é ver os meus filhos bem”.

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